O regime amplo da segurança serve para proteger as pessoas de ter de
confrontar ameaças, que são cada vez mais vistas como danos emocionais.
Frank Furedi, via revista Oeste:
Como sociólogo, fiquei espantado ao descobrir que tantas pessoas
ficaram confortáveis com a vida em lockdown. Quando, no decorrer de uma
conferência por Zoom, eu disse a uma colega de Nova York que estou
enlouquecendo e quero minha liberdade de volta, ela me repreendeu por
ter pensamentos irresponsáveis. Houve outras tentativas de garantir que
posso fazer muita coisa “para tornar a vida mais confortável” durante o
lockdown.
Uma grande pesquisa publicada no Reino Unido indicou que 49% dos
participantes concordaram com a afirmação “existem alguns aspectos das
medidas de isolamento de que gostei”. Pesquisas também indicam que
milhões de pessoas estão preocupadas que o lockdown vá ser atenuado
rápido demais.
Sem dúvida as pessoas ambicionam uma subsistência que vá muito além
de viver confortavelmente em lockdown. A maioria de nós está frustrada
por deixar a vida em compasso de espera e deseja o retorno a uma
existência normal. No entanto, o que esta pandemia fez foi ampliar e
reforçar um humor cultural preexistente de desorientação moral e
obsessão por segurança.
Em particular no mundo anglo-americano, onde a idealização de um
“espaço seguro” obteve ampla circulação, viver em condições de
confinamento com muita frequência não é considerado um problema. De
fato, diversas organizações e muitos indivíduos interpretam sua
existência em casa em lockdown por meio da linguagem de um lugar seguro.
Então, de acordo com Jonathan Mayer, professor emérito de geografia e
epidemiologia da Universidade de Washington, conforme o perigo, real ou
percebido, se aproxima, a ideia de espaço seguro se estreita, e então se
estreita mais, “até, na verdade, tornar-se qualquer coisa fora de
casa”. Dessa perspectiva, nada fora da nossa casa é seguro, o
confinamento é o garantidor de um espaço seguro, e ficar dentro de casa
oferece segurança contra um mundo inerentemente perigoso.
Ao longo da história, comunidades deliberaram sobre a relação entre
segurança e medo. “O medo é a base da segurança”, comentou o padre da
Igreja Católica Tertuliano. Mas o significado atrelado à segurança se
transformou radicalmente em tempos recentes. A aspiração por segurança
de modo geral se expressa por meio de indivíduos e da comunidade tomando
precauções razoáveis para limitar sua exposição ao perigo.
Na era atual, houve dois desenvolvimentos importantes, que se
reforçam mutuamente, que mudaram a maneira como a segurança é vista. A
definição de perigo se expandiu enormemente, e suas consequências são
vistas como muito mais prejudiciais e catastróficas do que se imaginava
anteriormente. Na linguagem da vida cotidiana, os danos costumam ser
dramatizados com o uso de termos como “existencial”, “incalculável” e
“irreversível”. Essas avaliações de ameaças infladas não estão apenas
confinadas aos perigos de alta visibilidade ao meio ambiente e do
terrorismo global, mas às experiências do dia a dia da sociedade. Então,
para se referir às crianças que sofreram algum dano, usa-se “marcadas
para o resto da vida” ou “traumatizadas para sempre”. A expansão do
significado de dano levou a uma revisão fundamental do sentido que a
sociedade atribui a segurança. Segurança se tornou uma obsessão cultural
a ponto de muitas instituições e muitos políticos terem adotado o ideal
de um mundo harm free — isto é, seguro ou sem causar danos — como um
objetivo realista.
A fantasia de construir um mundo livre de danos manifesta-se de
maneira mais visível por meio da intolerância em relação a riscos e
acidentes. O estabelecimento médico de emergência dos Estados Unidos
está na linha de frente para banir o uso da palavra “acidente” e
substituí-la pela expressão “ferimento evitável”. O argumento para
proibir o termo “acidente” é que os danos que as pessoas sofrem são
evitáveis e, assim, é irresponsabilidade do Estado que sejam causados
por um acidente.
Desde o começo do século 20, mas em especial desde os anos 1970,
revelou-se a regulação do medo por meio de normas morais. Não são os
teólogos nem os filósofos que fornecem orientações sobre a relação entre
medo e segurança, são os psicólogos. Uma das contribuições mais
significativas da psicologia foi dissociar o medo da gramática da
moralidade. Na década de 1970, uma versão clínica do medo ganhou
hegemonia, e a psicologia ditou que a maioria das pessoas, especialmente
as crianças, carecia de recursos para lidar com o medo. A partir dessa
perspectiva, a ameaça imposta pela emoção do medo foi de tal magnitude
que seu gerenciamento exige a intervenção de especialistas com formação
em psicologia.
O registro clínico do medo é amparado na suposição de que as pessoas,
especialmente as crianças, são frágeis demais para lidar com os males
que enfrentam. O regime amplo da segurança serve para proteger as
pessoas de ter de confrontar ameaças, que são cada vez mais vistas como
danos emocionais. Assim, isso representa uma mudança, de moral para
psicológica, na percepção transformada de segurança da sociedade. Aliás,
a retórica de um mundo sem dano e sua busca obsessiva por segurança
deveriam ser entendidas como uma expressão sublimada dos medos que estão
moralmente incontidos.
Isso também levou à emergência da segurança como a norma fundamental
que se sobrepõe a valores morais tradicionais como coragem e prudência.
Infelizmente, quando transformada em uma norma dominante, a segurança
tem o hábito de fazer com que as pessoas se sintam inseguras
constantemente. A experiência mostra que, quanto mais obcecados os
indivíduos se tornam por segurança, mais vivenciam o mundo de modo
inseguro.
A deificação da segurança tem uma dimensão expansiva e intrusiva. O
adjetivo “seguro”, como em “sexo seguro”, “bebida segura”, “alimento
seguro”, “escolas seguras” e “espaço seguro”, sinaliza um comportamento
responsável; a exortação “fique em segurança” é uma versão secular de
“que o Senhor esteja convosco”.
A idealização da segurança e da sobrevivência como valores em si
mesmos adquiriu uma influência preponderante na vida pública. A partir
dessa perspectiva, a exaltação do heroísmo e da coragem por gerações
anteriores se tornou totalmente incompreensível. “O sobrevivencialismo
leva a uma desvalorização do heroísmo”, comentou o crítico social
Christopher Lasch, assim como “toda uma gama de ideias supostamente
desgastadas — de honra, desafio heroico das circunstâncias e
autotranscendência”. Essas virtudes tradicionais foram deslocadas pela
busca por segurança. Nessa busca, a segurança adquiriu uma qualidade
indeterminada. Para a pergunta “seguro em relação a quê?”, a única
resposta lógica é “seguro em relação a qualquer coisa em potencial”.
A segurança não pode ser adquirida só pela vontade. Aqueles que
propõem que os riscos sejam evitados e a segurança seja obtida vão
inevitavelmente descobrir que o que estão adquirindo são obsessões de
suas inseguranças. O foco constante dos criadores de políticas públicas e
dos políticos na questão da segurança involuntariamente produz
ansiedades e inseguranças da população sobre o próprio futuro.
Na pandemia atual, quando todos somos forçados a lidar com uma vida
de incerteza, o vício da sociedade em segurança tem o triste efeito de
paralisar muitas pessoas e prejudicar a capacidade de lidar com a
adversidade. Claro que precisamos tomar medidas de precaução sensatas
para proteger a vida humana. Mas também precisamos fazer uso de nossa
própria reserva de coragem e do espírito humano da solidariedade para
derrotar o inimigo silencioso. Para superar nossa obsessão não saudável
pela segurança, precisamos agir como adultos e estar preparados para
deixar nossas ilusões sobre espaços seguros para trás.
Frank Furedi é professor emérito de
Sociologia na Universidade de Kent, na Inglaterra. Colunista da Spiked
Magazine, é autor de livros considerados clássicos sobre temas como
medo, paranoia e guerra cultural, como How Fear Works (2018) e First
World War — Still No End in Sight (2016). Lançará no próximo mês Why
Borders Matter: Why Humanity Must Relearn the Art of Drawing Borders
(Routledge).
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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