Texto surrupiado do Estado da Arte, sobre o livro do saudoso Umberto Eco:
Em parceria com a Editora Record, o Estado da Arte publica hoje
trechos do ensaio Intolerância, de Umberto Eco, disponível no lançamento
Migração e intolerância
(2020). A obra é uma pequena coletânea de escritos e intervenções de
Eco que nos convidam a pensar sobre temas cada vez mais atuais e
urgentes, com a argumentação que já é característica do autor italiano.
Fundamentalismo, integrismo, racismo pseudocientífico são posições
que pressupõem uma doutrina. A intolerância coloca-se antes de qualquer
doutrina. Nesse sentido, a intolerância tem raízes biológicas,
manifesta-se entre os animais como territorialidade, baseia-se em
relações emocionais, muitas vezes superficiais — não suportamos os que
são diferentes de nós porque têm a pele de cor diferente, porque falam
uma língua que não compreendemos, porque comem rãs, cães, macacos,
porcos, alho, porque são tatuados…
A intolerância em relação ao diferente ou ao desconhecido é natural
na criança, tanto quanto o instinto de se apossar de tudo o que deseja. A
criança é educada para a tolerância pouco a pouco, assim como é educada
para o respeito à propriedade alheia — antes mesmo do controle do
próprio esfíncter. Infelizmente, se todos chegam ao controle do próprio
corpo, a tolerância permanece um problema de educação permanente dos
adultos, pois na vida cotidiana estamos sempre expostos ao trauma da
diferença. Os estudiosos ocupam-se com frequência das doutrinas da
diferença, mas não o suficiente da intolerância selvagem, pois esta foge
a qualquer definição e abordagem crítica. No entanto, não são as
doutrinas da diferença que produzem a intolerância selvagem: ao
contrário, estas desfrutam de um fundo de intolerância difusa
preexistente. Pensemos na caça às bruxas. Ela não foi produto de épocas
obscurantistas, mas da era moderna. O martelo das feiticeiras (Malleus
Maleficarum) foi escrito pouco antes da descoberta da América, é
contemporâneo do humanismo florentino; La Démonomanie des sorciers, de
Jean Bodin, deve-se à pena de um homem do Renascimento, que escreveu
depois de Copérnico. Não pretendo explicar aqui por que o mundo moderno
produziu justificativas teóricas para a caça às bruxas. Quero apenas
recordar que essa doutrina conseguiu se impor porque já existia uma
desconfiança popular em relação às bruxas. É possível encontrá-la na
Antiguidade clássica (Horácio), no Édito de Rotário, na Summa Theologica
de São Tomás. Era considerada uma realidade cotidiana, assim como o
código penal leva em consideração a existência dos ladrões. Mas sem
essas crenças populares, uma doutrina da bruxaria e uma prática
sistemática da perseguição não teriam condições de difundir-se.
O antissemitismo pseudocientífico surge no decorrer do século XIX e
transforma-se em antropologia totalitária e prática industrial do
genocídio apenas em nosso século. Porém, não poderia ter nascido se não
existisse há séculos, desde os tempos dos Pais da Igreja, uma polêmica
antijudaica e, no seio do povo comum, um antissemitismo prático que
atravessou os séculos em qualquer lugar onde houvesse um gueto. As
teorias antijacobinas do complô judaico, no início do século passado,
não criaram o antissemitismo popular, mas exploraram um ódio pelo
diferente que já existia.
Os fundamentos teóricos de Mein Kampf podem ser refutados com uma
bateria de argumentos bastante elementares, mas se as ideias que
propunha sobreviveram e sobreviverão a qualquer objeção é porque se
apoiam em uma intolerância selvagem, impermeável a qualquer crítica.
[ . . . ]
[Q]ualquer teoria torna-se inútil diante de uma intolerância
crescente, que ganha terreno a cada dia. A intolerância selvagem
baseia-se num curto-circuito categorial que posteriormente pode ser
emprestado a qualquer doutrina racista: se alguns entre os albaneses que
entraram na Itália no[s] ano[s] passado[s] tornaram-se ladrões ou
prostitutas (e é verdade), todos os albaneses seriam, então, ladrões e
prostitutas. É um curto-circuito terrível porque constitui uma tentação
constante para cada um de nós: basta que nos roubem a mala no aeroporto
de um país qualquer para que voltemos para casa dizendo que é bom
desconfiar das pessoas do tal país.
[ . . . ]
Os intelectuais não podem lutar contra a intolerância selvagem,
porque diante da animalidade pura, sem pensamento, o pensamento fica
desarmado. E é sempre tarde demais quando resolvem lutar contra a
intolerância doutrinária, pois quando a intolerância se faz doutrina é
muito tarde para vencê-la, e aqueles que deveriam fazê-lo tornam-se suas
primeiras vítimas.
[ . . . ]
A intolerância selvagem deve ser, portanto, combatida em suas raízes,
através de uma educação constante que tenha início na mais tenra
infância, antes que possa ser escrita em um livro, e antes que se torne
uma casca comportamental espessa e dura demais.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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