Como o fim da era da afluência vai impactar prioridades, valores e o
futuro da geração mi-mi-mi? Artigo de Telma Santa Cruz para a Oeste:
O curioso como a pandemia da covid-19 fez o passado recente parecer,
de repente, remoto. Passaram-se apenas sete meses desde que a ativista
Greta Thunberg empolgou o mundo com seu discurso na Cúpula do Clima da
ONU, cobrando a redução imediata das emissões de carbono no planeta. A
pauta da mudança climática estava então no topo das prioridades de
governantes, políticos e da mídia. E investimentos crescentes em
energias renováveis pareciam sinalizar que a tão idealizada “economia
verde” estava, finalmente, a caminho de substituir o velho modelo
industrial ancorado em combustíveis fósseis.
Mas isso foi no distante mundo pré-pandemia. Como num passe de
mágica, o coronavírus conseguiu a proeza de transformar o sonho de Greta
em realidade, ainda que momentaneamente, ao desplugar da tomada, de
forma súbita, a economia globalizada. Num inimaginável efeito dominó,
indústrias de todo tipo foram parando as máquinas em país após país; o
comércio e os serviços fecharam as portas; alimentos começaram a perecer
por falta de colheita, transporte ou processamento. E o estacionamento
forçado de centenas de navios-tanque em portos dos cinco continentes,
pela impossibilidade de descarregar sua carga, compôs um retrato
emblemático do colapso geral dos mercados. Não há demanda por petróleo
se indústrias não funcionam, aviões e carros não circulam, tanques e
dutos estão lotados.
Alguns nostálgicos celebraram, inclusive, supostos benefícios ambientais dessa paralisia generalizada.
Houve drástica redução da poluição atmosférica revelada em fotos de
satélites, por exemplo, ou a volta de cisnes aos canais de uma Veneza
deserta de turistas. Como se esses ganhos não tivessem como
contrapartida a perda de renda de milhões de pessoas e seu corolário de
desgraças. Ou fosse possível fazer voltar o relógio do tempo, abolindo
de vez o capitalismo e a globalização, para realizar a toque de caixa,
como quem pula de um link a outro na internet, a utopia da geração de
Greta.
Ocorre que a pauta das prioridades públicas se inverteu. As profecias
alarmantes sobre o aquecimento global tornaram-se, de uma hora para
outra, uma ameaça distante. O foco agora, frente à brutal depressão que
se anuncia, são os esforços para ressuscitar a economia, com os governos
investindo trilhões de dólares na tentativa de recuperar empregos e
renda.
Enquanto as discussões a respeito do clima passam para segundo ou
terceiro plano, as projeções sobre uma catástrofe social iminente não
param de se acumular.
Só nesta semana, três prognósticos assombrosos vieram a público. A
Organização Internacional do Trabalho (OIT), órgão da ONU, corrigiu suas
previsões para alertar sobre a perda de 30 milhões de empregos devido à
pandemia. O respeitado centro de pesquisas International Food Policy
Research Institute (IFPRI) advertiu, por sua vez, que cada 1% de
contração econômica equivalerá a 3% de crescimento na população em
situação de miséria extrema, aquela que sobrevive com menos de US$ 1,90
por dia. E o Banco Mundial fez o cálculo desses novos miseráveis: nada
menos do que algo entre 40 milhões e 60 milhões de pessoas.
Os ambientalistas torcem para que a pandemia acabe por acelerar a
transição do obsolescente modelo da revolução industrial para uma
economia sustentável, baseada em fontes de energia renováveis e nas
novas plataformas digitais. Forçadas pelo coronavírus a experimentar os
benefícios do trabalho remoto, do e-commerce, do ensino a distância e
das teleconferências, as pessoas tenderiam, daqui em diante, a reduzir
seus deslocamentos, com a consequente diminuição da emissão de gases de
efeito estufa. Ao expor a vulnerabilidade das cadeias globais de
suprimentos — como no caso de matérias-primas para medicamentos, cuja
produção é concentrada na China —, a crise estimularia também a
renacionalização de parte das indústrias deslocadas para o exterior pela
globalização.
A maioria dos cenários, no entanto, sugere que o saldo da disrupção será justamente o oposto.
Haverá retrocesso nas políticas e avanços da sustentabilidade das
últimas décadas. Em parte, porque uma grande parcela do dinheiro público
que está sendo usado para tentar tirar a economia global da UTI será
dirigida à indústria convencional movida a fósseis. Em muitos países,
justamente para socorrer alguns dos setores mais poluentes da indústria,
como a automotiva, da aviação e a petrolífera.
Essa ótica leva em conta, também, a provável flexibilização da
legislação ambiental por muitos governos, em nome do crescimento a
qualquer custo para combater a pobreza e a fome. E o fato de que mesmo
aqueles mais sensíveis às demandas da sustentabilidade terão de bancar a
complexa migração dos empregos da economia tradicional para aqueles
ainda em desenvolvimento da “economia verde”. E isso num quadro de
disputa acirrada por recursos públicos e economias altamente
endividadas. “Estaremos diante de uma situação sem saída”, pondera o
filósofo francês Luc Ferry. “De um lado, uma demanda exponencial pela
proteção do Estado e nacionalizações. De outro, a incapacidade
estrutural de atendê-la. Afinal, as empresas não transferiram suas
fábricas ao exterior por prazer, mas para competir numa economia aberta,
que ninguém conseguirá fechar com uma varinha mágica.”
Para os que acreditam, como eu, na inefável capacidade humana de
superar obstáculos, a esperança é que tamanhos desafios acabem por
acelerar saltos espetaculares nas ciências e tecnologias. Os quais
poderão contribuir muito mais para a justa causa da preservação
ambiental do que discursos indignados e passeatas de adolescentes.
Pois se há um único consenso em meio às incertezas sobre o futuro é que acordaremos deste pesadelo num mundo mais pobre.
Para quem vive na base da pirâmide, isso significará um penoso
retrocesso em relação aos pequenos avanços da última década, como a
queda da miséria extrema e da desigualdade registrada pelo Banco Mundial
e puxada principalmente pela expansão da economia asiática, com a
incorporação de bilhões de pessoas ao mercado na China e na Índia.
Já para as classes médias e abastadas dos países de renda média e
alta, habituadas à afluência e à exuberância do consumo das últimas
décadas, o choque de realidade deverá ser brutal. Especialmente para os
jovens das chamadas gerações Y e Z, também conhecidas depreciativamente
como “geração mi-mi-mi”, devido à noção exacerbada de direitos, sem a
contrapartida de deveres, e a tendência a reclamar de tudo e todos.
Psicólogos e educadores vêm alertando para o fato de que, por ter
crescido numa época de inédita abundância, além de mimada por pais que
evitam contrariar os filhos, essa geração terá dificuldade para
enfrentar os novos tempos de escassez. A cultura educacional de
superproteção predominante nos últimos tempos também não teria preparado
esses jovens para lidar com a adversidade, ao contrário do que ocorreu
com seus pais e avós, criados com maior autonomia e exposição aos riscos
típicos da infância.
Como sintetizado no best-seller de 2018 The Coddling of the American Mind:
How Good Intentions and Bad Ideas Are Setting Up a Generation for
Failure (A superproteção da mente americana: como boas intenções e
ideias equivocadas estão preparando uma geração para o fracasso), dos
americanos Greg Lukianoff e Jonathan Haidt, “o propósito central desse
tipo de educação tem sido eliminar qualquer estresse ou dificuldade para
que a criança não sofra”.
O resultado foi um aumento vertiginoso dos casos de depressão e suicídio nessa faixa de idade nos Estados Unidos.
Em vários estudos consistentes, o fenômeno é atribuído ao medo, à
ansiedade e à falta de experiência com frustrações. Além do “vitimismo”,
a dificuldade de assumir responsabilidades, que seria um traço típico
da “geração mi-mi-mi”. Enquanto o idealismo de gerações anteriores as
levava a se perguntar como poderiam melhorar o mundo, esta prefere
culpar os mais velhos por todos os problemas — como ilustrado na frase
celebrizada por Greta Thunberg em seu discurso na ONU: “Vocês roubaram
meus sonhos e minha infância”…
Para o conceituado jornalista americano David Brooks, o coronavírus
veio lembrar que é impossível blindar os jovens dos problemas e
angústias inerentes à vida. Em recente artigo no The New York Times, ele
afirma esperar que a pandemia traga uma mudança de valores na educação e
na sociedade. “A era dos mimados acabou”, enfatiza. Faz sentido. Se a
destruição causada pela pandemia pode ser comparada à de uma guerra,
como essa geração vai assumir sua parte na tarefa de reconstrução?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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