O coronavírus criou um novo campo de operações hostis e as jogadas de
cada lado estão cada vez mais agressivas; cada um quer se livrar de
alguma coisa, escreve Vilma Gryzinski:
Donald Trump quer usar o novo coronavírus
para jogar a culpa na China, e suas artes de despistagem, pela
terrível crise que a pandemia criou nos Estados Unidos e tentar assim
ser reeleito presidente?
Sem dúvida nenhuma.
A China
quer usar a doença e suas consequências malditas para mostrar sua
eficiência no combate à praga, enquanto os Estados Unidos são um país
fraco, desorganizado, vulnerável e prontinho para deixar – adivinhem
para quem – o lugar de superpotência mundial?
Com toda certeza.
O mais instigante nessa nova configuração da disputa geopolítica dos
dois países é que, sem entrarmos de forma alguma no campo da
equivalência moral, ambos têm bons argumentos nessa nova “coronawar”.
A guerra fria não é nova – ao contrário, é um dos definidores de nossos tempos. A novidade é a nova agressividade – de Trump, nem se fale, faz parte do estilo.
A mais recente foi declarar que “tem um alto grau de confiança” em
evidência que “viu, sim” na teoria de que o novo coronavírus tem origem
num laboratório do Instituto de Virologia de Wuhan.
A hipótese de uma “fuga” acidental não é nova e, apesar do ar
conspiratório, foi levantada pela primeira vez por dois pesquisadores
chineses.
Eles estudaram casos anteriores de contaminação acidental por sangue e
urina de morcegos usados no laboratório justamente para pesquisas a
vasta quantidade de doenças se transmitem.
A outra teoria, de que o vírus foi “desenhado”, ou seja, criado em
laboratório com pedaços de outras doenças para produzir uma arma
biológica contra inimigos da China, já foi descartada, inclusive pelos
serviços de Inteligência dos Estados Unidos
(só o francês Luc Montagnier, Nobel de 2008 pela descoberta do HIV,
continua acreditando na origem artificial, que atribui à busca por uma
vacina contra a Aids).
Curiosamente, o conspiracionismo foi descartado por organismos
governamentais e cientistas de países ocidentais, mas não pela China.
Numa manobra clássica de contrapropaganda, a China tem plantado
agressivamente, através de seu exército digital e da sua rede
diplomática, que o vírus na verdade é uma criação do Exército americano.
Esse novo estilo de reações agressivas exercido especialmente através
de representantes diplomáticos, tem até um apelido: Lobo Guerreiro.
A origem é a série de filmes de ação de enorme sucesso, criada, dirigida e interpretada pelo ator Wu Jing.
Para quem tem paciência ou até gosta do gênero, a série é imperdível,
em especial por empacotar o nacionalismo chinês numa embalagem à que o
público ocidental está acostumado.
O herói é Leng Feng, atirador de elite de uma tropa de operações
especiais, um tanto rebelde (enquanto não ameaçam a China, claro).
É mais moderninho do que o sorumbático e solitário Rambo, também
criado por Sylvester Stalllone, mas tem exatamente o mesmo papel de
encarnar um arquétipo de masculinidade e resistência física que acaba
incorporando mitos e características nacionais.
Tema do primeiro filme da série: um vilão inabalável, protegido por
mercenários americanos, rouba de um laboratório chinês amostras de
sangue doadas por voluntários para pesquisas científicas. O objetivo é
criar um vírus que atinja apenas chineses, espalhando doença e
malformações fetais.
Atenção: o filme é de 2015.
A parte boa, se assim podemos dizer, da corrida da China para
abocanhar o lugar de superpotência mundial e deslocar os Estados Unidos é
que os dois países estão numa corrida radical para encontrar uma vacina
para o novo coronavírus.
Imagem o prestígio e o reconhecimento de toda a humanidade ao país
que encontrar a forma de evitar a praga que não só já devorou mais de
200 mil vida como arrisca simplesmente arruinar a economia mundial.
Se conseguir a vacina e oferecê-la generosamente a um planeta traumatizado a China ganhará uma aura de invencibilidade.
Capaz até de apagar as bem fundamentadas suspeitas de que demorou
demais para revelar as verdadeiras dimensões da doença, destruiu
amostras que mostrariam sua natureza e fez isso tudo com a cumplicidade,
pelo menos passiva, da direção da Organização Mundial de Saúde
Se não conseguir, já está espalhando teorias conspiratórias contra
os Estados Unidos que circulam não apenas nas franjas da internet, como
no caso das contra teorias americanas.
A pesquisadora Chen Xuyan mais do que insinuou uma entrevista de
televisão que os teste iniciados em Seattle com humanos foram
suspeitosamente rápidos. Um sinal de que os Estados Unidos já conheciam a
doença antes que ela explodisse em Wuhan.
A acusação já foi feita em níveis mais altos, acompanhada dos devidos protestos.
Para o público interno, a China tem um arsenal completo de
propaganda: reagiu rapidamente a uma doença desconhecida, tomou medidas
duas embora necessárias para proteger seus cidadãos, construiu hospital
de campanha com velocidade alucinante e saiu do “vírus de Wuhan” com 4
643 mortos, o número revisado.
A economia sofreu e ainda vai sofrer, mas já está recuperando o ritmo alucinante.
Em compensação, países europeus e os Estados Unidos cometerem erros
fatais, somam mortos às dezenas – ou centenas, no caso americano – de
milhares, revelaram lideranças fracas e vão se ferrar mais ainda com
descalabro econômico.
São argumentos fortes justamente porque têm elementos verdadeiros. A
tática do Lobo Guerreiro é antiga e executada com disciplina máxima.
A tática do Loiro Guerreiro na Casa Branca também tem lógica: os
chineses armaram, nem que tenha sido involuntariamente, em parte, um
agente patológico perfeito para tentar deixar os Estados Unidos de
joelhos.
Mais: “A China vai fazer qualquer coisa que possa para me fazer perder a eleição”.
Palavras do próprio Trump, perfeitamente ciente de que um inimigo
externo capaz de matar mais de 200 mil americanos sufocados por pulmões
devastados e paralisar a maior economia do mundo é um instrumento
eleitoral poderoso.
Brutalmente atingido por uma crise de dimensões únicas, sem contar os
próprios tiros no pé que dispara regularmente, Trump vai usar cada vez
mais os ataques contra a China como forma de tirar de suas costas
qualquer responsabilidade pela desgraça.
Xi Jinping
e seu exército de agentes em todos os setores vão tentar explorar as
fragilidades reveladas pelas grandes democracias para não só expandir os
interesses chineses como pregar a superioridade de seu sistema.
Em Rambo III, tem uma cena que virou icônica.
“Quem é você?”, pergunta um coronel russo, o vilão, ao fortão de camisetinha.
“Seu pior pesadelo”, responde Rambo.
Quem está se infiltrando nos sonhos de Trump no momento certamente é o
“vírus chinês” e todo seu elenco de consequências inconcebíveis – do
ponto de vista dele, em especial, perder a reeleição e ainda por cima
para um conhecido sinófilo chamado Joe Biden.
Mas talvez o Lobo Guerreiro tenha dado um bote grande demais para sua
boca. Talvez tenha acreditado demais na máxima de Sun Tzu de que “a
glória suprema é quebrar a resistência do inimigo sem lutar”.
No detestável mundo novo criado pela pandemia, esse confronto entre
China e Estados Unidos, que era uma espécie de doença pré-existente
administrável pelos interesses mútuos em fazer negócios e ganhar
dinheiro, caminha para a fase de síndrome aguda.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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