sexta-feira, 1 de maio de 2020

Flexibilização de normas na pandemia pode prejudicar economia a longo prazo


Especialistas avaliam que, se incorporadas à rotina de trabalho, as flexibilizações podem deixar trabalhador sem renda para consumo

Estela Marques
BAHIA.BA
Foto: Valdecir Galor/ SMCS
Foto: Valdecir Galor/ SMCS

A pandemia do novo coronavírus tem deixado milhões de pessoas contaminadas, milhares de pessoas mortas, mas também lançado luz em situações importantes. Se por um lado, reforça a necessidade de um sistema público de saúde fortalecido, por outro chama a atenção no que diz respeito às relações trabalhistas.
Uma delas é o estado de vigilância para que as medidas excepcionais de flexibilização dos contratos de trabalho não sejam absorvidas à rotina depois de passada a pandemia. Exemplo disso são os acordos individuais entre empregadores e empregados, que podem culminar em reduções de salários.
“Relação trabalhista é relação de forças. A grosso modo, essa noção de livre negociação é muito comprometida. A pessoa acaba sentindo que ou ela aceita, ou ela vai perder o emprego. Então, essa questão da prevalência do acordo individual, sem homologação do sindicato, gera fragilidade, amplia vulnerabilidade. A gente está diante de situação absolutamente excepcional. O problema é estender isso para o corriqueiro”, avalia a advogada Irena Carneiro Martins, com atuação nas áreas empresarial e contratual.
Para a especialista, é preciso que exista uma convergência de forças do Poder Legislativo, dos órgãos de fiscalização e da sociedade civil organizada. A tendência é que seja difícil retomar à situação anterior, principalmente quando ninguém sabe como vai ser a retomada da normalidade, nem que configuração será essa.
Precarização desde 2017
A advogada Irena Carneiro Martins lembra que as flexibilizações nas regras trabalhistas não vêm de agora. Em 2017 entrou em vigor a reforma que precarizou ainda mais as relações de trabalho, como com a ampliação da terceirização e da jornada intermitente.
A advogada trabalhista Cínzia Barreto de Carvalho, professora e conselheira da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Bahia (OAB-BA), lembra que essas mudanças anteciparam um desgaste que a classe trabalhadora deveria viver só agora, com a pandemia. Este, sim, é o momento de negociar, abrir mais a rigidez no que diz respeito ao direito do trabalho.
Faz falta também, na avaliação da advogada, a atuação forte do sindicato – também enfraquecido com a reforma de 2017. É da força sindical o papel de negociar, buscar soluções em conjunto, encontrar consensos.
“O que todo mundo quer é que empresas continuem abertas, continuem movimentando a economia. Ninguém em sã consciência pode desejar que, por meio do Direito, crie tantas restrições ao ponto de fechar empresas. Por outro lado, as empresas são quem? O resultado das empresas são as pessoas que trabalham lá”, acrescenta.
Mudanças nas estruturas
Apesar da preocupação, a advogada Irena Carneiro Martins observa que algumas práticas que surgiram dessa pandemia podem significar ganhos para as relações trabalhistas, caso sejam incorporadas. É o caso da compensação de banco de horas. Nessa pandemia, há empresas que adotam a ferramenta para que, depois de retomada a normalidade, as horas extras do trabalhador paguem os dias em que ficou parado em casa.
Também entra em questão a possibilidade do home office, do teletrabalho. Empresas que veem ser possível funcionar sem a necessidade de uma estrutura física de grande porte agora repensam sua forma de produzir, os espaços que ocupam.
Independentemente do que seja, Irena recomenda cautela e acompanhamento.
“Acho que, no final das contas, quando a gente esgarça muito uma relação, a gente acaba fazendo um desserviço no médio e no longo prazo. Às vezes, o empregador na hora pode achar incrível, mas se tiver esgarçamento das relações trabalhistas a tal ponto das pessoas estarem em condições precarizadas, salários baixos, a gente vai estar numa economia estagnada. Quem vai consumir? Quem vai adquirir produtos fabricados e serviços prestados, se está num contexto de precarização? É preciso ter olhar atento pra salvar o capitalismo do capitalismo”, destaca.
Já a advogada Cínzia Barrto de Carvalho avalia que o momento é de “reaprendizagem” – de produção, de consumo e de trabalho. Na categoria de trabalhadoras domésticas por exemplo, a mudança é sensível, já que as pessoas estão prescindindo dessa categoria e passaram a fazer os próprios serviços em casa. Mas a tendência é de migrar para uma forma mais parecida com a da diarista, por ser mais pontual.
Entre os próprios advogados, a adoção de sessões por teleconferência permitirão que apenas um profissional dê conta de audiências em diferentes cidades. No caso de uma empresa de grande porte, que contrata um grupo de advogados para defendê-la, o que era 15 ou 20 passará a ser um ou dois.
“Não significa que as ocupações vão sumir, mas elas vão mudar. O governo vai ter que pensar muito estrategicamente no trabalho. E, paradoxalmente, não temos um Ministério do Trabalho. Até simbolicamente você tem um caminhar institucional do Executivo no Brasil por um lado, e a vida pulsando e pedindo outro lado”, conclui.
É uma mudança de paradigma, de acordo com Cínzia, que abre caminho para a automação. Mas isso, especificamente, exige cautela. Também pensando na economia, automatizar de uma vez implica deixar milhares de pessoas sem renda. Onde elas conseguiriam dinheiro para consumir?

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