sexta-feira, 1 de maio de 2020

Como fazer a China pagar pela crise que gerou



Será que o Ocidente tem a coragem de enveredar por este caminho que introduziria um enorme fator de mudança no mundo em que vivemos? Manuel Almeida Ribeiro para o Observador:

De acordo com notícias recentes, várias entidades, principalmente nos Estados Unidos, nomeadamente o Estado do Missouri, têm anunciado a intenção de processar a República Popular da China pelos abissais prejuízos em vida humanas e perdas materiais causados pelo Covid19. Acontece que, sendo a China um Estado soberano, goza de imunidade internacional e, portanto, não pode ser demandada em tribunais de Estados estrangeiros. Sendo assim, o que pode ser feito?
A responsabilidade internacional de um Estado pode resultar da violação de uma obrigação internacional, o que constitui um ato ilícito, devendo o Estado ressarcir todos os danos causados pela prática desse ato ilícito. Pode ainda resultar da responsabilidade pelo risco, por desenvolver ou autorizar que seja desenvolvida no seu território uma atividade perigosa, se dessa atividade resultar um dano transfronteiriço. Este último tipo de responsabilidade foi desenhado para o ressarcimento de danos ambientais. Para questões relacionadas com a disseminação de doenças contagiosas, não existe, até agora, um quadro específico em direito internacional.

Sendo assim, poder-se-ia, à primeira vista, concluir que não existiria base jurídica para a responsabilização da China, mas acontece que, como referido no artigo de Edgar Caetano publicado no Observador em 20 de abril, a China terá violado as obrigações internacionais de notificação e informação contínua, resultantes da sua vinculação voluntária às International Health Regulations de 2005 da Organização Mundial da Saúde.

A violação de uma obrigação internacional constitui sempre o Estado que nela incorre em responsabilidade, mas sua concretização, ou seja, a obtenção do ressarcimento é extremamente complexa. Uma das vias seria a instauração de um processo no Tribunal Internacional de Justiça mas, para tanto, seria necessário que a China tivesse depositado no TIJ uma declaração de aceitação da jurisdição, o que não é o caso, ou que aceitasse a jurisdição do Tribunal para este caso específico, o que também não é plausível.
A falta de jurisdição não extingue, contudo, a responsabilidade. Qualquer Estado ou Estados que se proponham efetivar a responsabilidade deverão notificar a China dessa intenção, indicando a forma da reparação a que julgam ser adequada. Seria útil que tais notificações fossem precedidas de um inquérito internacional que apurasse se, de facto, houve da parte da China a omissão de informação e a negação ou ocultação de factos que causaram a eclosão ou o agravamento da pandemia e a terão feito incorrer em responsabilidade.

E caso a China não aceitasse a responsabilidade que lhe fosse imputada, não havendo tribunal que o possa decidir, que podem os Estados reclamantes fazer? Em direito internacional, quendo não há nenhum meio jurisdicional disponível, o que é mais a regra que a exceção, resta o recurso à autotutela, ou seja, a tomada de medidas, designadamente sob a forma de sanções, que possam induzir o Estado faltoso a alterar a sua conduta ou a obter o ressarcimento por essa via.
Tendo a China investimentos estatais em todo o mundo poderá ser muito vulnerável à aplicação de sanções que consistam, por exemplo, no sequestro dos seus interesses noutros Estados. Poderiam ainda ser introduzidas restrições a viagens de e para a China, com a invocação adicional de razões sanitárias, visto esta ser a terceira epidemia que teve origem na China neste século.

Será que o Ocidente tem a coragem de enveredar por este caminho que introduziria um enorme factor de mudança no mundo em que vivemos?

Presidente da Direção da Sociedade Portuguesa de Direito Internacional
 
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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