Alçar PF ao altar, como fizeram Bolsonaro e Moro em bate-boca, é ledo engano. E
tem mais: nenhuma instituição armada pode ser autônoma, porque
representaria um risco para a liberdade, valor fundamental. José
Nêumanne, via Estadão:
Emendar a Constituição com tradições ou ambições corporativistas,
como escolha do procurador-geral da República e autonomia administrativa
e financeira da Polícia Federal (PF), não garante combate lícito e
justo ao crime e à corrupção nem as torna preceitos do Estado de
Direito. Tal discussão, que parecia vencida depois da autorização ao
presidente Jair Bolsonaro para nomear o procurador Augusto Aras chefe do
Ministério Público Federal (MPF) sem que este fizesse parte da lista
tríplice encaminhada pelos colegas ao chefe do governo, é reaberta na
rumorosa troca do diretor-geral da polícia judiciária da União. As
revelações de abusos feitas pelo ex-ministro da Justiça e Segurança
Pública Sergio Moro ao ex-chefe não bastam para legitimar demandas de
autonomia dos servidores da instituição.
São abjetas e próprias de um governante que ignora o significado em
cada uma de suas letras do termo “impessoalidade”, previsto no Texto
Magno, as alegações do ocupante do mais poderoso posto da República.
Mais chocante do que o relato de crimes de responsabilidade e outros
delitos previstos no Código Penal, a serem usados num processo de
impeachment pelo Senado sob a presidência do Supremo Tribunal Federal
(STF), ou numa ação penal de apelo à mesma Corte, em ambos os casos com
prévia autorização de três quintos da Câmara dos Deputados, foi a forma
desrespeitosa como o alvo reagiu. A confirmação abusiva de que a
demissão de Maurício Valeixo da direção da PF atendia a uma intervenção
política, traduzida pelo eufemismo “interagir”, foi assumida na
expressão de desprezo com que ele respondeu à questão em rede social: “E
daí?”. O capitão de gravata encerrou o assunto da nomeação do chefe de
uma instituição de Estado com o refrão do samba-canção de sucesso de
Miguel Gustavo, cujo subtítulo parece profético: “Proibição inútil e
ilegal”. E o estilo cafona (que lhe é peculiar) de sertanejo sofrência
em queixumes de bolero piorou algo que já parecia cheirar mal.
A resposta dura a essa afronta será dizer: e daí é que acusador e
acusado incorreram num erro comum aos dois e generalizado ao tratarem
tanto o MPF quanto a PF como se fossem instituições acima das fraquezas
humanas. Esse é um engano sesquipedal, principalmente por ter sido
cometido por um político que passou 28 anos no Legislativo e por um
magistrado de longa carreira que se tornou para alguns um herói nacional
e para suas vítimas, um réprobo em batidas de martelo.
Márcio Thomaz Bastos, que também foi ministro da Justiça (de Lula),
rotulou a PF de “republicana” para fantasiá-la de instituição acima das
querelas partidárias e esconder o fato notório de que nas gestões do PT a
repartição pública foi usada para proteger aliados e perseguir
adversários, na era pré-Carlos Bolsonaro. A briga pelo acesso aos
segredos de inquéritos que devassam práticas criminosas da prole
presidencial não dota o departamento de uma imagem de madeira maciça.
Ela é a versão envernizada da santinha de pau oco usada por
contrabandistas de ouro de Minas colonial para a metrópole.
A PF autônoma à época do PT, louvada por Moro, era apenas uma
instituição indisciplinada, com virtudes e defeitos da alma humana dos
seus membros, remunerados pelos cidadãos. O louvável trabalho executado
por agentes que participaram com ele da Lava Jato não apaga as
evidências de sórdidas batalhas intestinas e episódios de indisciplina
em outras operações. Se o deputado Eduardo Bolsonaro tivesse dado
expediente de rotina no departamento, em vez de fazer carreira política à
sombra de papai, recebendo sem trabalhar em gabinete do PTB de Roberto
Jefferson, que ora volta a servir ao clã, poderia ter informado a Jair
que a associação de delegados que deste cobra autonomia institucional,
funcional e financeira vive às turras com outras duas, de agentes e
peritos. Autonomia para qual, caras-pálidas? E para quê?
Se o delegado Alexandre Ramagem não tivesse construído sua biografia
de policial em cargos decorativos no Parlamento e na Agência Brasileira
de Inteligência (quanta inteligência!), talvez pudesse ter informado ao
chefão que queixas de cansaço de Valeixo em reunião com superintendentes
não justificariam o “a pedido” do decreto de sua demissão. Se nem nisso
ele foi capaz de ajudar, como poderia saber que a gestão quase
impossível da direção-geral passa mesmo é pela habilidade para fugir ao
naufrágio no mar dos cardumes de tubarões? Estes ainda disputam carniça
na condição de viúvas de Tuma, PT-raiz dos tempos de Paulo Lacerda, PT
grã-fino liderado por Luiz Fernando Corrêa (fiel ao legado de Bastos),
PSDB de Marcelo Itagiba e bolsonaristas, que ainda não são capazes de
garantir a realização dos sonhos de blindagem dos filhotes pelo dono
(provisório) da caneta Bic. Como diria Romário, o craque, não o delegado
dos inquéritos que assombram as noites no Palácio da Alvorada, os
últimos “chegaram ainda agora e já querem se sentar perto da janela”.
E tem mais: nenhuma instituição armada pode ser autônoma, porque representaria um risco para a liberdade, valor fundamental.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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