quarta-feira, 29 de abril de 2020

Polícia Federal, uma santinha de pau oco.


Alçar PF ao altar, como fizeram Bolsonaro e Moro em bate-boca, é ledo engano. E tem mais: nenhuma instituição armada pode ser autônoma, porque representaria um risco para a liberdade, valor fundamental. José Nêumanne, via Estadão:

Emendar a Constituição com tradições ou ambições corporativistas, como escolha do procurador-geral da República e autonomia administrativa e financeira da Polícia Federal (PF), não garante combate lícito e justo ao crime e à corrupção nem as torna preceitos do Estado de Direito. Tal discussão, que parecia vencida depois da autorização ao presidente Jair Bolsonaro para nomear o procurador Augusto Aras chefe do Ministério Público Federal (MPF) sem que este fizesse parte da lista tríplice encaminhada pelos colegas ao chefe do governo, é reaberta na rumorosa troca do diretor-geral da polícia judiciária da União. As revelações de abusos feitas pelo ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro ao ex-chefe não bastam para legitimar demandas de autonomia dos servidores da instituição.

São abjetas e próprias de um governante que ignora o significado em cada uma de suas letras do termo “impessoalidade”, previsto no Texto Magno, as alegações do ocupante do mais poderoso posto da República. Mais chocante do que o relato de crimes de responsabilidade e outros delitos previstos no Código Penal, a serem usados num processo de impeachment pelo Senado sob a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF), ou numa ação penal de apelo à mesma Corte, em ambos os casos com prévia autorização de três quintos da Câmara dos Deputados, foi a forma desrespeitosa como o alvo reagiu. A confirmação abusiva de que a demissão de Maurício Valeixo da direção da PF atendia a uma intervenção política, traduzida pelo eufemismo “interagir”, foi assumida na expressão de desprezo com que ele respondeu à questão em rede social: “E daí?”. O capitão de gravata encerrou o assunto da nomeação do chefe de uma instituição de Estado com o refrão do samba-canção de sucesso de Miguel Gustavo, cujo subtítulo parece profético: “Proibição inútil e ilegal”. E o estilo cafona (que lhe é peculiar) de sertanejo sofrência em queixumes de bolero piorou algo que já parecia cheirar mal.

A resposta dura a essa afronta será dizer: e daí é que acusador e acusado incorreram num erro comum aos dois e generalizado ao tratarem tanto o MPF quanto a PF como se fossem instituições acima das fraquezas humanas. Esse é um engano sesquipedal, principalmente por ter sido cometido por um político que passou 28 anos no Legislativo e por um magistrado de longa carreira que se tornou para alguns um herói nacional e para suas vítimas, um réprobo em batidas de martelo. 
Márcio Thomaz Bastos, que também foi ministro da Justiça (de Lula), rotulou a PF de “republicana” para fantasiá-la de instituição acima das querelas partidárias e esconder o fato notório de que nas gestões do PT a repartição pública foi usada para proteger aliados e perseguir adversários, na era pré-Carlos Bolsonaro. A briga pelo acesso aos segredos de inquéritos que devassam práticas criminosas da prole presidencial não dota o departamento de uma imagem de madeira maciça. Ela é a versão envernizada da santinha de pau oco usada por contrabandistas de ouro de Minas colonial para a metrópole.

A PF autônoma à época do PT, louvada por Moro, era apenas uma instituição indisciplinada, com virtudes e defeitos da alma humana dos seus membros, remunerados pelos cidadãos. O louvável trabalho executado por agentes que participaram com ele da Lava Jato não apaga as evidências de sórdidas batalhas intestinas e episódios de indisciplina em outras operações. Se o deputado Eduardo Bolsonaro tivesse dado expediente de rotina no departamento, em vez de fazer carreira política à sombra de papai, recebendo sem trabalhar em gabinete do PTB de Roberto Jefferson, que ora volta a servir ao clã, poderia ter informado a Jair que a associação de delegados que deste cobra autonomia institucional, funcional e financeira vive às turras com outras duas, de agentes e peritos. Autonomia para qual, caras-pálidas? E para quê?

Se o delegado Alexandre Ramagem não tivesse construído sua biografia de policial em cargos decorativos no Parlamento e na Agência Brasileira de Inteligência (quanta inteligência!), talvez pudesse ter informado ao chefão que queixas de cansaço de Valeixo em reunião com superintendentes não justificariam o “a pedido” do decreto de sua demissão. Se nem nisso ele foi capaz de ajudar, como poderia saber que a gestão quase impossível da direção-geral passa mesmo é pela habilidade para fugir ao naufrágio no mar dos cardumes de tubarões? Estes ainda disputam carniça na condição de viúvas de Tuma, PT-raiz dos tempos de Paulo Lacerda, PT grã-fino liderado por Luiz Fernando Corrêa (fiel ao legado de Bastos), PSDB de Marcelo Itagiba e bolsonaristas, que ainda não são capazes de garantir a realização dos sonhos de blindagem dos filhotes pelo dono (provisório) da caneta Bic. Como diria Romário, o craque, não o delegado dos inquéritos que assombram as noites no Palácio da Alvorada, os últimos “chegaram ainda agora e já querem se sentar perto da janela”.

E tem mais: nenhuma instituição armada pode ser autônoma, porque representaria um risco para a liberdade, valor fundamental.
 
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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