O Brasil só descobriu que é preciso cuidar da saúde pública quando o
coronavírus chegou à classe média e aos ricos. Vai esquecer isso assim
que a tragédia passar. J. R. Guzzo, coluna do Estadão:
Ninguém nunca imaginou uma coisa dessas, nem poderia mesmo imaginar,
mas aí está: a epidemia trazida pelo coronavírus revelou uma súbita
paixão das autoridades, políticos e elites pela solução dos problemas de
saúde pública no Brasil. Saúde pública, para encurtar a conversa,
significa uma coisa só: doença de pobre. E por que os barões que decidem
as coisas neste país iriam se preocupar com dores que não doem neles?
Para essa gente, saúde significa planos médicos cinco estrelas, cobertos
pelo dinheiro que você paga de impostos, doutores que cobram acima de
R$ 1 mil a consulta e transporte de helicóptero para os hospitais mais
caros do Brasil. São até capazes, de vez em quando, de fazer algum
discurso piedoso sobre o assunto. Mas as suas lágrimas secam bem
depressa.
O desprezo pela saúde por parte dos governantes brasileiros é uma
questão de fatos que estão acima de dúvida; não pode ser disfarçado por
nenhuma devoção repentina “pela vida”, como eles descobriram em sua
cruzada contra a covid-19. Vamos aos testes práticos. Em pleno ano de
2020, cerca de 50% da população brasileira continua sem ter saneamento
básico. A culpa disso não é dos marcianos. É dos que governam o Brasil,
em todos os níveis – e de mais ninguém, pois só eles têm a autorização
legal para agir na área. Político brasileiro, como se sabe, tem horror a
fazer esgoto: é obra que fica embaixo da terra, que ninguém vê e que
não rende voto.
O pior é que eles não resolvem e não deixam ninguém resolver. Jaz há
mais de um ano no Congresso, sendo pouco a pouco desfigurada, a nova Lei
do Saneamento Básico que abre o setor à iniciativa privada. Por que não
anda? Porque governadores e prefeitos detestam a ideia – querem manter
vivos, pelo máximo de tempo possível, os atuais “contratos” com as
estatais que nada fazem para melhorar aqueles horrendos 50%, mas são um
dos seus mais queridos cabides de emprego e focos de influência
política. A desgraça não é apenas a falta de esgotos. Continuam operando
no Brasil cerca de 3 mil “lixões” ao ar livre. Por lei, já deveriam
estar fechados há quatro anos; a lei “não pegou”. Como acreditar, diante
desses monumentos em honra à doença, em qualquer governante brasileiro
que agora faz discurso em defesa da “saúde pública”?
São Paulo, a maior cidade do Brasil, é atravessada ao longo de 25
quilômetros por dois dos mais infames esgotos a céu aberto do mundo, o
Rio Tietê e o Canal do Pinheiros. Mananciais de água que abastecem o
município estão poluídos por favelas que se instalaram às suas margens,
há anos, com a cumplicidade direta da Prefeitura. As autoridades não
tocam na Cracolândia do centro da cidade, um dos mais violentos focos de
tuberculose do Brasil – ao contrário, chegaram a dar mesada para os
drogados que vivem ali, e qualquer tentativa de intervir na área é
denunciada como ato de “higienização” (a palavra “higiene” tem sentido
pejorativo no mundo oficial – a menos quando aconselham as pessoas a
lavar as mãos em época de epidemia).
“Opção pela vida”? Na favela de Paraisópolis, para a qual ninguém dá
cinco minutos de atenção sincera, há 45.000 pessoas por quilômetro
quadrado – em Taboão da Serra, que tem a maior densidade demográfica do
Brasil, são 14.000 e na cidade de São Paulo, cerca de 7.500. Como é
possível pensar em saúde pública quando os que mandam e influem são
indiferentes à uma usina de doenças igual à essa? Como exigir
“distanciamento social” num lugar como Paraisópolis?
O Brasil só descobriu que é preciso cuidar da saúde pública quando o
coronavírus chegou à classe média e aos ricos. Vai esquecer isso assim
que a tragédia passar.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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