sábado, 4 de abril de 2020

O mal que nos cerca


O mal existe. Ele não segue as nossas regras. Coluna de Leonardo Coutinho para a Gazeta do Povo:

Se o nazismo jamais tivesse existido e as atrocidades cometidas no período não definissem algumas das páginas mais sombrias de nossa história, talvez hoje fosse inimaginável um cenário em que um partido político planejou em meio a uma guerra uma estrutura que mandou para morte 6 milhões de pessoas, sem que isso tivesse uma relação direta com o conflito em si. Seria ainda mais impensável se, além disso, o assassinato em massa tivesse sido realizado sem que os perpetradores obtivessem conquistas diretas com anexação de territórios, aumentasse o seu poderio bélico ou enfraquecesse as forças inimigas. Assim foi o nazismo.
Os eventos em questão eram tão inimagináveis que mesmo com o holocausto em curso houve quem não percebesse ou não acreditasse na sua existência. Em A Noite (esgotado em português), o Nobel de Literatura Elie Wiesel descreve, já no ponto de partida de seu livro que narra de forma sufocante sua experiência em campos de concentração, como a comunidade judaica tardou a reconhecer o mal que a cercava.
Em Sighet, cidade romena na região da Transilvânia, na qual Wiesel nasceu e viveu até a sua adolescência, os cerca de 14.000 judeus que formavam uma comunidade coesa e pujante embarcaram na ilusão de que tudo acabaria bem. A guerra estava ao lado, mas ao mesmo tempo era distante. Os relatos da imprensa passavam a impressão de que os aliados avançavam (o que era fato) e que todo parecia estar perto de ficar bem.
Embora a guerra fosse algo tão presente, havia uma profunda alienação sobre a "solução final", o plano nazista de eliminação total dos judeus da Europa. Mesmo o relato em primeira-pessoa de um sobrevivente de um os campos poloneses da região de Kolomay, onde mais de 60.000 judeus foram assassinados, não foi o bastante para convencer o seu povo de que as "deportações" cada vez mais recorrentes era uma passagem sem volta para morte nas mãos os nazistas.
Wiesel relata que na véspera do embarque no comboio que o levaria com sua família para Auschwitz quem organizou a multidão que embarcaria nos trens rumo à Polônia não era polícia, mas o próprio Conselho Judaico, que generosamente o autor anistia.
Sete anos depois da publicação do relato de Wiesel, em 1963, a filósofa alemã Hanna Arendt joga luz sobre o funcionamento das engrenagens do mal e como elas giraram e seguem girando macias em ambientes totalitários que produzem sociedades acostumadas a cumprir ordens sem medir suas consequências. Apenas como parte de um ismo qualquer que no caso era, evidentemente o nazismo. Mas se aplica a outros ismos como o comunismo, fascismo e terrorismo, por exemplo.
A "banalidade do mal", como ela definiu a ausência de julgamentos morais no cumprimento de ordens devido a mais completa renúncia do ato de pensar. Colocar-se diante de si mesmo e medir os efeitos e a amplitude dos atos. A anulação, negação ou transfusão da consciência e individualidade para um movimento de massa que, no conceito de Arendt, se tornaria no maior mal perpetrado, que "é o mal cometido por Ninguém, isto é, por um ser humano que se recusa a ser pessoa".
A filósofa alemã caiu em desgraça com judeus por explicar de forma sem nenhum tipo de contaminação pelo fato de ela ser judia, como o colapso moral que o totalitarismo nazista embutiu em seus membros se alastrou na sociedade europeia e até mesmo nas lideranças judaicas tais como aquelas que Wiesel narra como as que deram um tipo de "alento" aos judeus que embarcavam para morte em Sighet.
Arendt decifrou as razões do comportamento colaboracionista dos líderes. Uma equação que previa o silêncio em troca de vidas poupadas. Obviamente, segundo ela, as de "categorias privilegiadas", como a proteção dos judeus alemães em detrimento dos judeus poloneses. O que significa que, fique claro, em momento algum se pode dizer que os judeus foram cúmplices de sua própria tragédia. Embora muita coisa pudesse ter sido diferente, é possível pensar que tais líderes poderiam não ter tido outra escolha naquele momento.
Mas entre os colaboracionistas (e não falo dos judeus e nem de nazistas ou antissemitas) havia um "colapso moral" puramente oportunista focado na manutenção de seus interesses pessoais, financeiros e políticos. E aqui faço a transição para os dias atuais.
Eu abomino a forma barata com que o nazismo é recorrentemente evocado para comparações. Os presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro já foram comparados com Adolf Hitler ou como o termo genocídio, que não existia até 1944 quando foi cunhado para definir crimes que tinham por objetivo a eliminação da existência física de grupos nacionais, étnicos, raciais ou religiosos, é usado de forma indevida no nosso país tropical.
Não recorro ao nazismo para fim de comparação, reafirmo. A máquina de morte lidera por Hitler não deve ser negligenciada como instrumento de aprendizado. Não é inteligente esquecer como o mal banalizado e transformado em atos impessoais serve para justificar atrocidades impensáveis para aqueles que conservam seus valores e autonomia perante os seus atos.
Algumas reações diante da pandemia de Covid-19, que brotou na China e já infectou mais de 1 milhão de pessoas ao redor do globo, sugerem que há um certo comportamento que remete ao dos judeus de Sighet de Wiesel que subestimaram o mal que os cercava. Alguns interesses pessoais e financeiros que fizeram a "respeitável sociedade europeia" tolerar o intolerável parecem ser reproduzidos em comportamentos e até em notas oficiais.
O mundo mergulhou em uma longa noite. Apesar das incertezas e riscos que emergem da falta de clareza sobre o que enfrentamos e como atravessaremos a escuridão, algumas lições deveriam servir para nos proteger. O mal existe. Ele não segue as nossas regras. Há quem troque a moral pela manutenção de seus interesses. Há quem simplesmente mente para nos ludibriar. Mas nada pode ser mais perigoso que nós mesmo se simplesmente ignorando o que o passado tem a nos ensinar.
Não comparo nada ao nazismo. Falo de comportamento. Da angustiante sensação de me sentir como na Sighet de 1942. Todos duvidando do que é evidente e alguns poucos trabalhando por isso para na hora certa entrarmos em um vagão apertado. Não mais como indivíduos, como se passou com os judeus, mas como país.
Jornalista, autor do livro “Hugo Chávez, o espectro”, pesquisador e comentarista sobre segurança e relações internacionais. Escreve semanalmente, desde Washington, D.C. 

BLOG ORLANDO TAMBOSI

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