É um escárnio dar, em média, R$ 190 para os mais pobres enquanto
continuamos pagando auxílio-moradia para o andar de cima do setor
público. Fernando Schüler, via Gazeta do Povo:
Thomas Paine foi um dos primeiros a propor, com algum detalhe, uma
renda básica universal. Seu desejo não era nada simples: preservar os
benefícios da civilização, sendo o maior deles a prosperidade, e
corrigir seu maior erro: a miséria. Em Agrarian Justice, escrito na
França no anoitecer da revolução, ele defendeu ser um “direito de
herança” que cada indivíduo recebesse um bônus, no início da vida
adulta, e uma renda incondicionada, aos 50 anos.
Ideias como esta correram o mundo, muito depois de Paine. Nos anos
1990, Philippe Van Parijs (Real Freedom for All) popularizou a tese
fundamental do movimento em favor da renda básica universal: livrando as
pessoas da urgência econômica, elas poderão dizer “não” às múltiplas
formas de humilhação social e darão um novo significado à ideia de
liberdade individual.
Com argumentos distintos, a tese foi também cultivada pela tradição
liberal. Hayek sugeriu uma renda mínima não universal e Milton Friedman é
amplamente conhecido pela defesa de seu “imposto de renda negativo”
para substituir os programas do welfare State convencional.
O tema ganhou relevo com a pandemia. Mais de 50 países já anunciaram
modelos variados de transferência de renda, incluindo o Brasil, com o
auxílio emergencial aprovado por unanimidade no Congresso.
Que isso migre de programas provisórios a políticas permanentes é um
tema em aberto. O país que chegou mais perto de instituir a renda
universal foi a Suíça. No plebiscito de 2016 a proposta perdeu por ampla
margem, sob muitos argumentos. Um deles dizia simplesmente que
desvincular a remuneração do trabalho não é algo que faria bem à nossa
sociedade. A mensagem subjacente: OK para muitas formas de proteção
social, desde que se preserve um saudável equilíbrio entre
responsabilidade social e responsabilidade individual.
O Brasil é um país com larga experiência em transferência de renda e
talvez seja um bom momento para imaginar que sua lógica possa evoluir e
cumprir um novo papel civilizatório. Uma possibilidade é a conversão de
um programa de renda mínima, como o Bolsa Família, em um programa de
renda básica. Na prática, a ampliação de sua abrangência, valores e
condicionantes. Em caráter substitutivo, isto é, eliminando gasto
público não prioritário, incluindo-se subvenções empresariais e
programas sociais menos eficientes, com o foco exclusivo na melhora da
posição dos mais pobres.
O próprio Bolsa Família foi, historicamente, um avanço em relação a
velhas políticas assistencialistas, como a rotineira distribuição de
cestas básicas. A renda distribuída em um cartão magnético incorpora o
direito de escolha e gera efeitos na economia (multiplicador de 1,78 no
PIB, segundo Marcelo Neri). E mais importante: elimina burocracia. Boa
parte dos recursos públicos, em programas assistenciais, se perde na
máquina requerida para prestar serviços e distribuir coisas. O conhecido
tema da “captura pelos provedores”.
O que a crise do coronavírus fez foi colocar nossas tripas de fora.
43% de nossas crianças vivem em famílias abaixo da linha de pobreza. É
um escárnio dar, em média, R$ 190 para os mais pobres dentre essas
famílias enquanto continuamos pagando auxílio-moradia para o andar de
cima do setor público. E este é apenas um exemplo.
A renda básica é uma discussão real e crescente no mundo atual. Não
acho que ela seja apenas um delírio de engenharia social ou uma panaceia
capaz de equacionar o problema social. Ela apenas lança luz sobre
aquele que é o desafio ético do nosso tempo: a eliminação da miséria. É
esta a nossa fronteira civilizatória, assim como foi, no século 19, o
fim da escravidão. Quem sabe as placas mais profundas de nossa
sociedade, que parecem se mover nessa crise, ajudem a colocar em pauta
um tema para o qual não há uma resposta clara, mas que merece ser
discutido com informação e racionalidade.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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