A obsessão com a cloroquina nasce da ignorância, do medo e do desespero. João Pereira Coutinho, via FSP:
Será que engordei durante essa quarentena? Difícil dizer. Não tenho
balança. Rebentei com ela, dez anos atrás, durante uma crise bulímica.
Mas existem sinais: quando me levanto, descubro que a silhueta do meu
corpo ficou cavada no colchão – uns dez centímetros de profundidade, não
mais.
Se as coisas continuarem assim, ainda vou dar um contributo
inestimável para a física quântica: conseguir, ao mesmo tempo, acordar
na cama e no chão. Decadente? Admito. Mas o estado do meu corpo é
bastante semelhante ao estado do mundo, pelo menos na tese de Ross
Douthat.
Apresentações: Ross Douthat, como colunista do New York Times, é a
voz da razão. O seu mais recente livro, The Decadent Society (“A
sociedade decadente”), é a prova. Tese dele: desde 1970 que vivemos em
estado de decadência. Não inovamos; repetimos. Não avançamos; andamos em
círculos. Esse não é o sentimento comum?
Fato. Temos a sensação de que a velocidade tomou conta de tudo.
Aparência. É muito ruído por nada: as mudanças significativas são mais
raras. Imaginemos o seguinte cenário: um americano, em casa, em 1890.
Subitamente, o mesmo americano é levado para 1950, aterrando no meio de
telefones, rádios, geladeiras, lava-louças – e com automóveis cruzando
as ruas. É motivo para infarto.
Agora imaginemos o mesmo americano saltando de 1950 para 2020.
Excetuando a decoração, o que mudou? Verdade: existe a internet.
Impossível negar essa proeza. Mas Ross Douthat pergunta: você preferiria
viver no mundo que existiu até 2002 (o que inclui, apesar de tudo,
laptop com Windows 98 e até acesso à Amazon), abrindo mão de tudo que
veio depois; ou, pelo contrário, você preferiria o mundo pós-2002, com
Twitter, Facebook ou iPad, mas sem banheiro em casa?
Eis o ponto do autor: nos séculos 19 e 20, a humanidade conheceu o
“sublime tecnológico”. Do caminho de ferro ao avião, da bomba atômica à
chegada do homem à Lua, sem esquecer a anatomia de Rita Hayworth
(opinião pessoal), o progresso foi gigantesco, alucinante – e sublime.
Mas, tirando a internet, onde estão os carros voadores que nos
prometeram? Onde está aquele resort turístico em Marte? Onde está a cura
do câncer? Onde está a imortalidade?
E, já agora, pergunto: onde estão as vacinas contra os mil vírus que
sempre circularam por aí – e que, subitamente, paralisam o mundo e nos
obrigam a regressar às quarentenas da Idade Média? Ross Douthat explica:
nas décadas de 1990 e 2000, as farmacêuticas gastaram cada vez mais
dinheiro em pesquisa, aprovando cada vez menos medicamentos. A partir de
2010, o declínio tem sido ainda mais acentuado.
É também por isso que, suspeita minha, a obsessão corrente com a
cloroquina na luta contra a Covid-19 não nasce apenas da ignorância.
Também se explica com uma mistura de medo e desespero de que a vacina
milagrosa, a existir, não será para amanhã de manhã. E nada atormenta
mais os homens modernos do que o reflexo da sua própria impotência.
Como sair daqui? Sim, como reativar o renascimento das artes; a
pujança da demografia; a vitalidade das instituições políticas; e,
pormenor delicioso, a própria vivacidade da música pop (conta Douthat
que, nos últimos anos, as canções que fizeram sucesso revelaram um
declínio no número de acordes e até no número de novas transições entre
acordes)? Essa, talvez, é a grande observação do livro: a decadência
pode durar anos, décadas, séculos. Uma espécie de purgatório, sem
grandes alegrias ou tristezas, mas perfeitamente habitável e até
confortável, no sentido básico da palavra.
Como o poeta W.H. Auden gostava de recordar, o que nos fascina e
aterroriza na história do Império Romano não foi o fato de ele ter
terminado; foi ter continuado, durante quatro séculos, sem criatividade,
afeição ou esperança. A repetição circular, a sensação de esterilidade
tão própria das nossas sociedades afluentes, onde a gritaria política e a
pornografia são os tópicos com maior ibope na internet (duas formas de
onanismo e nada mais), não tem prazo de validade. Exceto se, pelo
caminho, o imprevisto acontecer e o torpor atual se desintegrar,
exigindo uma forma diferente de viver e de encontrar respostas. Será que
esse vírus e o futuro ainda desconhecido que ele traz no ventre podem
ser os bárbaros de que estávamos à espera?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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