É imoral transferir para as futuras gerações os ônus de gastos
financiados por moeda, sob a aparência de caridade, pois isso significa
extorsão transferida para os nossos netos. Ubiratan J. Iorio para a Revista Oeste:
Henrique Meirelles, o atual secretário de Fazenda e Planejamento de
João Doria, ex-ministro da Fazenda de Temer e ex-presidente do Banco
Central nos dois primeiros mandatos petistas, deu uma declaração que,
embora eu prefira acreditar ser apenas política, vem provocando polêmica
entre os que se preocupam com a economia.
Segundo ele, é hora de o governo federal aumentar fortemente suas
despesas para conter os impactos do novo coronavírus na saúde e na
economia. Até aí, nada substancialmente diferente do que boa parte dos
economistas vem dizendo. Com efeito, em situações emergenciais e
inéditas como a provocada pelo vírus chinês, mesmo liberais como o
economista e filósofo austríaco Friedrich Hayek (1889-1992) aceitam que o
governo socorra os mais necessitados, mas sob a condição de que o
socorro seja transitório.
A polêmica surge quando Meirelles afirma que “isso deve ser feito
inclusive com a criação de moeda pelo Banco Central e com a captação de
recursos pelo Tesouro Nacional por meio da emissão de dívida”. E ganha
tintas carregadas quando acrescenta que a retração da economia será tão
forte que não existe risco de inflação caso a autoridade monetária até
mesmo emita moeda para o pagamento, entre outras medidas, do auxílio
emergencial de 600 reais concedido aos brasileiros de baixa renda
durante pelo menos três meses. Em suas palavras: “O Banco Central tem
grande espaço para expandir a base monetária, ou seja, imprimir
dinheiro, na linguagem mais popular, e, com isso, recompor a economia.
Não há nenhum risco de inflação nessa situação”.
Em resumo, Meirelles está incentivando o governo a aumentar a dívida
pública e a inflacionar, embora dê outro nome à segunda dessas
sugestões. Cabe de início frisar que o problema está longe de ser de
falta de liquidez e que, se alguma política precisa ser executada, é
preferível que seja a fiscal, especialmente por causa da taxa de câmbio,
que já se encontrava bastante desvalorizada antes do desembarque do
vírus em Cumbica.
Com a vênia de praxe, o risco de inflação existe e, para piorar as coisas, ele é de 100%.
Explico. Para começar, é preciso esclarecer o que é inflação. Para
isso, é melhor dizer antes o que ela não é — e que, infelizmente, é
exatamente o que muitas pessoas, inclusive economistas, pensam que é.
Imagine que na medição da temperatura de um paciente, o termômetro acuse
38 graus de febre. Certamente, há alguma causa para isso. Digamos que
ele tenha se exposto sem agasalho a um vento gelado e que por isso tenha
contraído uma gripe. Logo, a causa foi o vento, este provocou a gripe e
esta, por sua vez, fez subir a temperatura.
A febre, portanto, é só a manifestação, o efeito inevitável da
imprudência. Da mesma forma, quando alguém observa que os índices de
preços sobem mês a mês, isso tem necessariamente uma causa. Os preços
estão subindo porque, certamente, algum fato sucedido antes provocou
essa subida. Quase todos chamam de inflação os aumentos contínuos e
generalizados de preços, mas eles não são a inflação, são simples
efeitos, inevitáveis, da inflação. Vamos destrinchar isso com um exemplo
simples do extraordinário economista austríaco Ludwig von Mises
(1881-1973), adaptado aos dias presentes.
Considere duas mercadorias, o pão (abundante) e o álcool em gel 70%
(que nestes dias é escasso). Se, por qualquer motivo, a oferta de álcool
aumentar substancialmente em relação à de pães, seu preço, ou seja, a
relação de troca entre álcool e dinheiro — ou entre álcool e outras
mercadorias —, vai se alterar consideravelmente em relação ao atual:
será possível entrar em uma farmácia e comprar álcool a preços muito
menores que os praticados hoje. Da mesma forma, se o governo imprimir
dinheiro sem nenhum lastro (ouro, como era no passado, ou um acréscimo
de produção), o poder de compra de cada real em circulação, mais cedo ou
mais tarde, vai diminuir e as quantidades de pães, de álcool, de
máscaras, de hidroxicloroquina e de todas as outras mercadorias que
podem ser adquiridas com 1 real também vão cair.
A emissão de moeda, a inflação, só vai se manifestar nos preços alguns meses depois.
Da mesma forma, o insensato citado acima pode ter-se exposto ao vento
gelado, por exemplo, em um sábado, mas é possível que a gripe só tenha
se manifestado dois ou três dias depois. Dois pontos essenciais precisam
ser enfatizados, então, se o Banco Central seguisse ao pé da letra o
conselho do secretário de Fazenda de São Paulo. O primeiro é que a
“febre” da economia vai aparecer um dia, ou seja, os preços vão
inevitavelmente aumentar. E o segundo é que esse aumento não depende de
existir ou não desemprego de mão de obra e de outros fatores de
produção.
“Emitir moeda sem lastro hoje” e “inflacionar hoje”, sempre, em
qualquer país, com ou sem covid-19, é a mesmíssima coisa. Se houver
retração econômica — e certamente isso acontecerá —, os preços vão
demorar a subir, mas, assim que a recuperação tiver fôlego, eles
começarão a aumentar, porque sempre que há mais dinheiro o valor do
dinheiro cairá em relação ao de todos os outros bens, assim como uma
supersafra de batatas, por exemplo, derrubará o preço da batata em
relação aos demais. A ação humana ao longo do tempo e em condições de
incerteza genuína, base de toda a economia do mundo real, simplesmente,
não deixa de existir, com ou sem crise e desemprego.
Se, em vez de dar R$ 600 a cada necessitado, o governo, por exemplo,
der 4 gramas de ouro, de onde virá esse ouro? Não é óbvio que ele vai
ter de ser tirado de alguém? Analogamente — e que não venham dizer que
isso é “simplista” —, imprimir moeda sem lastro é como tirar o ouro e —
pior! — justamente dos mais carentes, que não conseguem se defender dos
efeitos nocivos da inflação. É imoral transferir para as futuras
gerações os ônus de gastos financiados por moeda (bem como por maior
dívida), sob a aparência de caridade, pois isso significaria extorsão
transferida para nossos netos.
O que escrevi não significa nenhuma subestimação dos efeitos
catastróficos da “coronacrise” sobre a economia mundial. Como o gráfico
do Grupo Eurasia mostra, a devastação será praticamente em todo o
planeta, vai-se distribuir de modo desigual entre os países e os efeitos
esperados sobre o Brasil deverão ser substanciais. Entretanto, por se
tratar de algo absolutamente inédito, a incerteza é gigantesca, tudo
poderá acontecer e qualquer estimativa, da mais até a menos pessimista,
neste momento, será um palpite em forma de equações. Além disso, esses
exercícios apresentam metodologias que diferem entre si e dependem de
eventos bastante imprevisíveis, como o tempo decorrido em cada país
entre o início e o fim da pandemia.
Parece que os próximos meses serão tristemente emocionantes, porque todos os países estão “chamando o Meirelles”.
Ubiratan J. Iorio é doutor em
Economia (EPGE/FGV), presidente do Conselho Acadêmico do Instituto Mises
Brasil e professor associado (aposentado) da Uerj.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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