Pode ser útil, neste momento de agitação, levar em conta as seguintes realidades, aponta J. R. Guzzo na Revista Oeste:
• O presidente Jair Bolsonaro sabia perfeitamente bem o que estava
fazendo quando resolveu ir à manifestação pública de domingo, em frente
ao Quartel General do Exército em Brasília, quando uma multidão de
tamanho até agora não contabilizado precisamente pediu, com carro de
som, faixas e tudo mais, o fechamento do Congresso, a eliminação do
Supremo e a intervenção militar “já”. Sabia que “a pauta” da
manifestação, como se diz hoje, seria essa mesmo, e poderia muito bem
não ter comparecido – mas não apenas compareceu, como subiu na
carroceria de uma caminhonete e falou ao público. Em suma: Bolsonaro,
por sua livre e aberta vontade, tornou-se participante ativo de um ato
público contra a Constituição.
• O presidente também sabe muito bem que a sua participação iria
provocar indignação em modo extremo na classe política, nos meios de
comunicação e no resto do mundo que não gosta dele. Bolsonaro,
obviamente, acha que tem a ganhar com isso. Quis, de caso pensado, jogar
gasolina na fogueira que está aí – pode até não ser grande coisa como
fogueira, pelo menos por enquanto, mas foi gasolina.
• O que o presidente falou de cima da sua caminhonete não foi para
buscar um melhor entendimento com o outro lado. “É preciso acabar com
essa patifaria”, disse ele. “Não vamos negociar nada”. Enfim: “Esses
políticos têm de entender que quem manda é o povo”. Suas palavras foram
as de alguém que está disposto a dar a impressão de que topa ir para a
briga, e não de quem está propondo uma negociação.
• Bolsonaro, com o incentivo da parte do seu governo que acha uma boa
ideia “ir para o pau”, embora ninguém saiba dizer com mais detalhes o
que seria esse “pau”, mostrou que quer mesmo apostar no apoio da massa
popular – cuja maioria ele acredita que esteja a seu favor e contra os
políticos – para enfrentar o conflito aberto em que está metido com o
Congresso e os altos tribunais de justiça do país. Não acha suficientes
os aliados que tem hoje nos dois outros poderes; quer colocar o povo
(que, como ele diz, “é quem manda”) diretamente na disputa. Povo na rua,
com frequência, faz político baixar o facho – mesmo porque nunca é a
favor dele.
• O presidente parece convencido, também, de que conta com o pleno
apoio das Forças Armadas nessa briga; não mostra a menor preocupação com
a possibilidade de que os militares venham, em qualquer duelo de
verdade, a ficar do lado dos seus inimigos. O Exército, com certeza, não
fez nenhum esforço sério para dissuadir os organizadores da
manifestação do domingo de armar o comício em frente ao seu Quartel
General. Se tivesse feito, a coisa simplesmente não teria acontecido
ali. Em suma: as versões de que o gesto de Bolsonaro foi reprovado pelos
militares está mais no mundo dos desejos de seus adversários do que no
mundo dos fatos.
• Não houve até agora nenhum sinal de que multidões, de qualquer
tamanho, estejam dispostas a ir para a rua em defesa do deputado Rodrigo
Maia, do presidente do Senado ou do ministro Gilmar Mendes e seus
colegas do STF. Vão ter o apoio dos editoriais, das declarações de
personalidades e da “comunidade internacional” – mas da população
nacional, a que existe de verdade à sua frente, nem pensar. Todos eles
sabem disso. Bolsonaro também. Os militares também.
• O presidente, já no dia seguinte, fez o que se poderia esperar que
fizesse: disse que não quer fechar o Congresso, nem o Supremo, pois
essas coisas não podem ser aceitas numa democracia. E a “pauta” do
comício? Coisa de gente infiltrada no meio do povo bom, disse Bolsonaro.
Vive acontecendo, não é mesmo? As pessoas estavam apenas se
manifestando em favor da volta ao trabalho suspenso pela quarentena e em
apoio do seu presidente. Nenhuma novidade em nada disso. Num dia você
vai. No outro você volta. Diz que “vai encarar” e, ao mesmo tempo, que
quer paz. Quanto ao futuro – bem, é o futuro. Depois se vê.
• Não há a possibilidade prática de que o presidente dê um golpe de
estado para se tornar mais presidente do que já é. Está imensamente
frustrado com as dificuldades que o mundo político cria para o seu
governo e os seus projetos. Pode estar preocupado com as suas chances de
reeleição. Não gosta do Congresso, nem no STF, nem do desastre
econômico que imagina ter pela frente. Mas não pode fazer o que a
manifestação do domingo quer que se faça; não tem meios para isso, muito
simplesmente. Se Bolsonaro quer ou não quer fechar os dois outros
poderes, depor os governadores, etc. etc., e implantar uma ditadura,
como acusam seus inimigos, é irrelevante – não dá para fazer nada disso,
e pronto.
• O barulho pelo “impeachment” deve crescer muito, mas fazer mesmo o
“impeachment” na vida real são outros 500. Achar que basta, para
derrubar Bolsonaro, que o deputado Rodrigo Maia aceite uma das denúncias
que vai receber pedindo a abertura do processo, é enganar-se a si
próprio e tentar enganar os outros. É preciso, em primeiro lugar, que o
presidente da República tenha cometido um crime – e falar numa
manifestação como a do domingo não é crime. Pode ser uma porção de
coisas; mas crime não é, ou será muito difícil provar que é. Em seguida,
é preciso que três quintos dos 513 deputados e 81 senadores decidam que
houve o tal crime e votem a favor da deposição do presidente. Eles só
farão isso se acharem que vão ganhar muito; com certeza, ninguém está lá
para ajudar alguma causa ou interesse do vizinho.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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