O desafio histórico para verdadeiros líderes é gerir a crise enquanto constroem o futuro. Pedro Malan:
A crise em que se veem o Brasil e o mundo é a um só tempo sanitária,
econômica e social. Para enfrentá-la precisamos, mais que nunca, de
serena combinação de humildade e confiança da parte de suas lideranças.
Humildade para reconhecer o alto grau de incerteza e riscos presentes,
confiança em que teremos capacidade para nos erguermos à altura dos
desafios. É preciso também reduzir conflitos - com o Congresso,
governadores, comunidade científica, mídia profissional, parcela
expressiva da opinião pública e até mesmo com os fatos.
Marcus André Mello recorre a Maquiavel na abertura de seu belo artigo
na Folha desta semana: “Os príncipes devem transferir decisões
importunas para outrem, deixando as agradáveis para si”. O autor mostra
quão complexos podem ser os mecanismos de “reivindicação de crédito e de
transferências de culpas por decisões impopulares”. E conclui: “Na
atual pandemia, são três as lições a tirar para Trump, Johnson e
Bolsonaro: ter começado mal importará pouco; transferir
responsabilidades não funcionará. (...) E mais importante, a crise
revelará sua real capacidade de liderança, não há como escapar”.
A velocidade de contágio do vírus atesta de forma dramática as
interações necessárias do mundo da política nacional, regional e
internacional. Em artigo recente, Henry Kissinger afirma que nenhum país
poderá superar de forma isolada um problema que é global, e cujas
consequências econômicas e políticas estarão conosco por gerações. Para o
experiente analista, impõe-se aos EUA um grande esforço em três áreas:
contribuir para aumentar a resiliência global a doenças infecciosas;
fazer mais do que foi feito em 2008/09, porque a situação agora é muito
mais complexa; e lembrar as razões que levaram os EUA a cooperar com
outros países nos arranjos internacionais que marcaram o mundo do
pós-guerra. O desafio histórico para verdadeiros líderes é administrar a
crise enquanto constroem o futuro.
Com efeito, lideranças nacionais serão inevitavelmente avaliadas não
só pela opinião pública doméstica, como também pela percepção dos outros
países. Importa como nos vemos, mas importa também como somos vistos
por outros. Afinal, 2020 será marcado por uma brutal recessão na
economia mundial e no comércio internacional, muito mais intensa que a
de 2008/09. A magnitude dos efeitos sobre oferta, cadeia de suprimentos,
demanda e, portanto, sobre emprego e renda não permitirá uma
recuperação rápida em 2021. Pesa, ademais, o receio de uma segunda onda
da covid-19 ainda em 2020.
“Abril é o mais cruel dos meses” escreveu o poeta T. S. Eliot (A
terra desolada, 1922). Está sendo em 2020. Mas não terá sido menos cruel
março, quando a epidemia virou pandemia e atingiu, em mais de 140
países, o primeiro milhão de casos registrados (certamente uma
subestimativa), que terão alcançado 2 milhões nos primeiros 12 dias de
abril. Aguarda-se maio com trepidação.
Graças ao trabalho extraordinário da mídia profissional - que deu e
dá espaço inestimável a epidemiologistas, médicos e profissionais da
área -, parte expressiva da opinião pública compreendeu que a capacidade
do sistema nacional de saúde não comportaria um fluxo excessivo de
demandas por cuidados hospitalares, em particular leitos com
respiradores em UTIs. Daí a necessidade de políticas de isolamento
social, para que o pico da epidemia fosse menos intenso e diferido no
tempo. A política do Ministério da Saúde foi explicada com clareza e
transparência pelo ministro Mandetta e sua equipe. A política de
assistência emergencial aos mais vulneráveis, aos informais, às pequenas
e médias empresas, e à preservação do emprego, era e é absolutamente
necessária e pôde apoiar-se na aprovação pelo Congresso da declaração de
calamidade pública.
O vírus e a necessidade de respostas simultâneas que ele impõe vêm
desvendando de forma dramática a extensão de nossas desigualdades e
fragilidades sociais - nas áreas de saúde pública, saneamento, educação.
São temas que vieram para ficar, com intensidade renovada, e estarão
presentes em qualquer debate futuro, muito após o momento em que houver
sido superada a atual pandemia.
O Brasil sairá diferente, e espero que melhor, ainda que
gradualmente, se algumas importantes lições desta sofrida experiência
puderem ser aprendidas. Se alcançarmos grau de capital cívico mais
elevado, renovação relevante de lideranças políticas, maior confiança e
credibilidade dos governantes junto à maioria da população.
Decorrido quase um terço de século da Constituição de 1988, o sonho
de criação de um Estado de bem-estar social está a passar por seu mais
sério teste. O Brasil descobre quão difícil é implementar o generoso (e
de todo desejável) objetivo de construir um Estado garantidor do alento
de aposentadoria para todos e de serviços de saúde e educação
universais. Isso envolve custos elevados para a sociedade, e exige clara
definição de prioridades numa visão de médio e longo prazos, que
alcança o País em que gostaríamos que nossos filhos e netos pudessem
viver.
As lições do vírus paradoxalmente ajudam nesse importante diálogo do
País consigo mesmo; diálogo sobre um futuro que com frequência
permitimos seja adiado.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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