A monitorização da nossa autonomia e liberdade poderá dar aso a outras
situações que a nós nos parecem verdadeiramente assustadoras. Será que
teremos que pagar um preço tão alto para sair da pandemia? Texto de
Catarina Borges e Telmo Ferreira para o Observador:
Ao longo de toda a história das sociedades, os pensadores sempre se questionaram sobre esta magna questão: O que é a liberdade?
Jean-Jacques Rousseau, no seu afamado Contracto Social, assim
escreveu: “O homem nasceu livre e por toda a parte vive acorrentado”,
mas afinal o que será isto de ser livre?
Na Antiguidade Clássica, a liberdade era caracterizada pela
participação na vida política da pólis: a cidadania ativa era condição
necessária para se ser livre, e condição necessária para a cidadania era
existir uma pólis em que esta pudesse ser exercida. No entanto, com a
modernidade tudo isto mudou.
De facto, o re-surgimento da ideia de jus-naturalismo e as exigências
do mundo moderno transformaram as necessidades do Homem que, ocupado e
preocupado com o fomento das suas actividades, passou a não ter tempo
para a vida política, tendo assim que delegar a alguém essa função.
Deste modo, a liberdade passa a ser entendida como a autonomia
individual, em que o cidadão pode desempenhar livremente as suas
actividades de foro privado e económico, não tanto a participação
política em si, já que esta cedeu lugar à representação política.
É assim que pensadores como Benjamin Constant legitimam o sistema político representativo, que se mantem até aos nossos dias.
O advento do liberalismo, iniciado com a Glorious Revolution inglesa
de 1688 e depois consagrado pela Revolução Americana e Francesa no
século XVIII, permitiu plantar as sementes para a democracia
contemporânea.
O triunfo das ideias do Estado limitado de John Locke, circunscrito à
função de garante da liberdade e felicidade, complementado
posteriormente com a ideia de separação de poderes, deixa assim os seus
cidadãos livres no silencio das leis.
Estes progressos históricos lançaram as bases para a Democracia que
tanto valorizamos hoje. Toda esta evolução demorou o seu próprio tempo a
surgir, derramou muito sangue e teve bastantes retrocessos, e portanto
não podemos permitir que situações extremas como a pandemia que vivemos
hoje sejam argumentos para a sua aniquilação. Não podemos ceder nos
nossos ideais. A liberdade que nos custou tão caro não poderá ser hoje
sacrificada, mesmo parecendo esse o caminho mais fácil. Há que
desenvolver aquilo que o indivíduo de melhor tem: o poder da sua
cidadania e a sua liberdade de procurar um futuro melhor.
O caminho mais fácil provavelmente concluirá com o previsível aumento
das restrições e diminuição da nossa liberdade. Ao pensar numa solução
deste foro para o problema que enfrentamos hoje, teremos de ter presente
um pensamento complexo e reflectir o que isso poderá alterar no futuro.
Tudo tem as suas consequências.
A questão do “Big Data” é uma delas. A maneira como as novas
tecnologias podem ser usadas para controlo da população é de facto um
dos temas de debate da nossa geração. A própria utilização destas como
ajuda para o controlo das cadeias de transmissão deve ser ponderada e
usada com o máximo de cuidados: não podemos esconder que em tempos
excecionais poderão ser úteis, mas de qualquer das maneiras terão de ser
o mínimo invasivas (possível) da nossa privacidade. Não podemos
permitir que um “Big Brother” em tempo real seja instalado, com
consequências parecidas à famosa sociedade de George Orwell em “1984”. A
ponderação está a ser alienada e a balança do equilíbrio refletido está
desequilibrada.
A tão elogiada racionalidade instrumental que vê a sua génese no
Iluminismo está a ser apagada pela obscuridade do pânico e dos grupos de
interesse. Os media apresentam-nos apenas as questões deprimentes da
saúde mundial, mas o pano de fundo político não nos parece mais
auspicioso. Por mais fascinante que a ideia de controlo e alisamento de
curvas seja, temos de saber ser contracíclicos. A liberdade não é
ideológica, é sim um direito natural inalienável.
Agora, alguns previsivelmente dirão: “Mas a saúde tem mais valor que a
liberdade!”. Não pomos isso em causa, mas como portugueses temos que
ser audaciosos. Não esperamos um D. Sebastião, apenas ansiamos pelos
lúcidos que vêm nas suas casas o porto seguro e não o barco instável de
uma empresa que ganhará milhões com os corpos dessecados. Este momento
não requer estratégicas maquiavélicas de extração de benefícios pela
desgraça e pânico de outros.
Não podemos ver só aquilo que queremos efectivamente ver.
Será que querem acrescentar ao número de mortes o número de
liberdades perdidas infundadamente? Por mais reconfortante que seja
permanecer nos braços do Estado, há responsabilidades que não podem ser
passadas como batatas quentes, mas quem prefira subordinar-se a ideias
perigosamente radicais. Terá o papel higiénico mais valor do que a
democracia?
Como na relação entre os libertários de direita e esquerda, em que os
segundos defendem o que os primeiros tanto criticaram, estaremos nós
próprios dispostos a queimar o hospital de valores por que tanto
lutamos? Estamos no estado de emergência, mas parece que se pode
vislumbrar que o próximo estado não será o de sítio, mas sim um Estado
totalitário. Da mesma forma que a redistribuição forçada não tem valor, a
imposição de comportamentos racionais não constituiu caridade. Qual o
investimento mais vantajoso e rentável? Fazer o sacrifício (sim, porque
vão existir sacrifícios, não pretendemos ser utópicos num mundo às
avessas) de permanecer em casa ou diligentemente tornarmo-nos cidadãos
oprimidos? Muitos levam o cão a passear para fugir à realidade
claustrofóbica, mas o uso da tecnologia pela busca de uma saída mais
célere, passear-nos-á muito mais cedo do que imaginávamos. Quiçá 2020
seja o “Back to the Future”, só que bastante mais sombrio?
Deixamos isto apenas como reflexão. A monitorização da nossa
autonomia e liberdade, poderá dar aso a outras situações, que a nós nos
parecem verdadeiramente assustadoras. Será que teremos que pagar um
preço tão alto? Não haverá soluções que poderão coadunar a nossa
liberdade e o combate á pandemia? Nós acreditamos que haja.
Ocorre-nos o exemplo das restrições do governo chinês no combate a
esta pandemia, que seriam certamente desumanas e inaceitáveis para nós,
se as tivéssemos de viver. Em primeiro lugar, os números chineses
provavelmente não corresponderão bem à verdadeira realidade, por motivos
imagináveis. Mesmo assim, o pragmatismo e eficácia da ação chinesa
esconde muita repressão, vigilância e trabalho “forçado” dos seus
profissionais de saúde, brutalmente obrigados a trabalhar horas
intermináveis, longe das suas cidades e famílias.
Deixamos a pergunta: será de facto isto que realmente queremos para a
nossa sociedade? Como filhos da democracia, cabe-nos adaptar e garantir
a sua sobrevivência, cultivando de um modo equilibrado as nossas
liberdades individuais com a luta contra o SARS-CoV-2.
“We shall meet in the place where there is no darkness”
George Orwell
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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