Não há dúvida que utilizando dados pessoais podemos tornar as políticas
governamentais mais eficazes. Mas com um custo: a nossa privacidade e
liberdade. Tornamo-nos criaturas capazes de ser pirateadas, adverte
Teresa Roque em artigo publicado pelo Observador:
Vivemos num nirvana tecnológico. Hoje em dia, a Google oferece-nos
informação ilimitada à distância de um clique e a Amazon a possibilidade
de descarregarmos, instantaneamente, um livro. O Facebook permite que
nos conectemos a velhos e a novos amigos, o Linkedin pode arranjar-nos
um novo emprego e a Uber Eats permite-nos saborear a comida dos nossos
restaurantes preferidos no conforto das nossas casas.
Isto é apenas o início. Em breve, carros autodirigidos reduzirão os
milhões que morrem na estrada devido a falha humana e, na saúde, a
biometria permitirá detetar precocemente sinais de uma doença,
reduzindo, consideravelmente, o custo do tratamento quer para o doente
quer para o contribuinte. Travar a inovação tecnológica é uma
impossibilidade. As vantagens são demasiado atraentes.
Mas existe um lado negro nesta revolução tecnológica. Todos os dias,
voluntária ou involuntariamente, abrimos mão de cada vez mais informação
sobre nós. A maioria nem se apercebe da gravidade do problema. A
gravidade do problema conduz-nos à inevitabilidade entre os benefícios
da tecnologia e a nossa privacidade e libardade.
O Covid-19 tem mostrado este conflito muito claramente. Em países que
estavam dispostos a utilizar os dados pessoais da população – como, por
exemplo, Hong Kong, Singapura, Taiwan ou a Coreia do Sul, a subida da
curva nunca foi muito acentuada, tendo estes países estabilizado a
situação mais rapidamente. Não há dúvida que utilizando dados pessoais
podemos tornar as políticas governamentais mais eficazes. Mas tudo isto
tem um custo – a nossa privacidade e liberdade.
Yuval Harari, autor dos best-sellers Sapiens, Homo Deus e 21 Lições
para o Século XXI pinta claramente a possibilidade de um futuro
distópico. Mostra que a disrupção tecnológica é uma das ameaças
existenciais que a Humanidade enfrenta no século XXI. Se queremos
sobreviver a este século, está na altura de lidarmos com isto de forma
séria, concertada e de olhos bem abertos.
Tornámo-nos criaturas capazes de ser pirateadas. Hoje, a
biotecnologia, aliada à tecnologia da informação, permite que um governo
ou uma empresa me conheçam melhor do que eu me conheço a mim próprio.
Um sistema que me conheça melhor do que eu é capaz de prever os meus
sentimentos e as minhas decisões, manipular os meus sentimentos e as
minhas decisões, bem como, em último caso, tomar decisões por mim.
A ligação entre inteligência artificial e biometria significa que nos
tornaremos marionetas nas mãos das grandes empresas de tecnologia como o
Facebook, a Google e outras. É fácil perceber como tudo isto pode
transformar-se num problema grave para a democracia liberal e para o
capitalismo.
A democracia e as economias de mercado, os pináculos gémeos do
liberalismo, baseiam-se na ideia filosófica de livre arbítrio. Ideias
como «o eleitor é que sabe» e «o cliente tem sempre razão» estão
profundamente enraizadas nesta mundividência liberal. Ambas defendem que
é o indivíduo quem tem autoridade máxima sobre o poder de exercer a sua
liberdade de escolha.
Hoje sabemos que o livre arbítrio foi sempre uma ilusão. Ou melhor,
os seres humanos têm vontade própria e tomam decisões, mas não são
livres de escolher a sua vontade. As nossas escolhas são altamente
influenciadas pela genética, pelas hormonas, pelo meio social, pela
educação, pelas nossos convicções ideológicas e religiosas e por aí em
diante, coisas que, definitivamente, não escolhemos. Basicamente, somos
já uns algoritmos.
Mas até hoje ninguém conseguia entender-me melhor do que eu. Com o
casamento entre a tecnologia da informação e a biotecnologia, uma
máquina, num futuro não muito longínquo, poderá perfeitamente
conhecer-nos melhor do que nós nos conhecemos. E isto é uma situação
completamente nova.
O eleitor pode “não saber melhor.” O cliente pode “não ter razão.”
A humanidade pode tomar más decisões. São eleitos maus governantes.
Porém, as democracias liberais tiveram sempre uma grande vantagem sobre
os outros regimes: se se tivessem cometido erros, estes poderiam ser
facilmente corrigidos, sem violência, na altura das eleições. Mas porquê
esperar pelas eleições? Por que não evitar o erro humano antes de este
ser cometido? Teoricamente, podemos construir um algoritmo que saiba
melhor do que nós quem é que nos devia liderar tornando, assim, as
eleições irrelevantes.
O mesmo acontece com o capitalismo. O «laissez-faire», quando não
regulamentado, sempre teve desvantagens. Ainda assim, com todos os seus
defeitos, foi o sistema económico mais eficiente e produtivo de todos. A
capacidade de processamento da informação de mercado amplamente maior
permitiu-lhe superar todos os outros sistemas de planeamento central.
Mas com o avanço da tecnologia e de big data, talvez um supercomputador
possa, pelo menos em teoria, ser mais eficiente.
Jack Ma, fundador do Alibaba, disse, numa conferência, em 2017: “Ao
longo dos últimos 100 anos acreditámos que a economia de mercado era o
melhor de todos os sistemas mas, dado o acesso a todo o tipo de
informação, é possível que encontremos a mão invisível do mercado».
Encontrámo-la e direcionámo-la? Antecipámo-la? Desativámo-la? Não
especificou.
Big data e uma maior tecnologia de processamento de informação
conseguem ajudar os governantes a permanecer no poder. A tecnologia da
informação não dará aos governantes apenas informação sobre o que as
pessoas querem, mas também meios para manipular esses desejos. Os
algoritmos não só conseguem perceber os desejos dos eleitores mas e os
algoritmos conseguem ajudá-los a realizá-los. A legitimidade que advêm
de ser eleito pelo povo pode passar a ser irrelevante. Isto seria «1984»
e «Admirável Mundo Novo» juntos num só cenário.
Mesmo conseguindo travar regimes totalitários, a tecnologia poderá na
mesma minar a liberdade humana. As pessoas confiarão cada vez mais na
inteligência artificial para tomar decisões por elas. Em última
instância, a autoridade passará de nós para as máquinas. Talvez no
futuro, e em nome da excelência, com quem casamos, onde trabalhamos ou
se o Banco Central deve ou não ajustar as taxas de juro são decisões que
deixarão de estar nas nossas mãos. Uma ideia tenebrosa…
Todavia, nós não estamos necessariamente condenados a uma vida de
irrelevância e tirania. A tecnologia, por si só, não é determinista. Não
leva, necessariamente, à tirania. Como Harari enfatizou, a sua função é
traçar os vários cenários. Cabe-nos a nós escolher o caminho por onde
seguir viagem. A revolução industrial fez nascer tanto as democracias
liberais como o fascismo e o comunismo.
Também os algoritmos só podem fazer o que lhes dissermos. Na base
estão objetivos e juízos de valor. Mas isto levanta outras questões.
Quem decide quais devem ser estes objetivos e juízos de valor? E se os
inputs estiverem errados? E se parecerem bons mas tiverem consequências
inesperadas?
Até agora, as decisões mais importantes do mundo estão a ser tomadas
por uma elite privilegiada em Silicon Valey que representa ninguém. É
desconcertante, no mínimo, que decisões básicas e fundamentais que
moldarão o futuro da humanidade e da própria vida envolvam apenas um
pequeno grupo de engenheiros informáticos. Está na altura de a
comunidade global acordar para isto e estabelecer regras globais de jogo
no que respeita a regulamentação de privacidade e proteção de dados.
O professor de Oxford, Nick Bostrom, que inventou o termo «risco
existencial», salientou que a única maneira de criar uma
superinteligência segura é criar uma que partilhe dos nossos valores,
que aprenda aquilo que valorizamos, com um sistema motivacional
configurado para seguir esses mesmos valores. Mas o que são os “nossos”
valores, quem somos “nós” e quem de “nós” decide? Um enorme “nós” elegeu
Trump, partilhando os seus valores…
Tendo em conta o elevado risco, seria normal que mais pessoas
estivessem preocupadas com isto. Por natureza, subestimamos o destino
das gerações futuras. Permitir que uma inteligência artificial
superpoderosa se apodere, lentamente, de nós, sem uma reflexão
antecipada, poderá ser a decisão mais catastrófica da humanidade.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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