sexta-feira, 3 de abril de 2020

Covid-19, tecnologia e democracia: devemos nos preocupar?


Não há dúvida que utilizando dados pessoais podemos tornar as políticas governamentais mais eficazes. Mas com um custo: a nossa privacidade e liberdade. Tornamo-nos criaturas capazes de ser pirateadas, adverte Teresa Roque em artigo publicado pelo Observador:

Vivemos num nirvana tecnológico. Hoje em dia, a Google oferece-nos informação ilimitada à distância de um clique e a Amazon a possibilidade de descarregarmos, instantaneamente, um livro. O Facebook permite que nos conectemos a velhos e a novos amigos, o Linkedin pode arranjar-nos um novo emprego e a Uber Eats permite-nos saborear a comida dos nossos restaurantes preferidos no conforto das nossas casas.

Isto é apenas o início. Em breve, carros autodirigidos reduzirão os milhões que morrem na estrada devido a falha humana e, na saúde, a biometria permitirá detetar precocemente sinais de uma doença, reduzindo, consideravelmente, o custo do tratamento quer para o doente quer para o contribuinte. Travar a inovação tecnológica é uma impossibilidade. As vantagens são demasiado atraentes.

Mas existe um lado negro nesta revolução tecnológica. Todos os dias, voluntária ou involuntariamente, abrimos mão de cada vez mais informação sobre nós. A maioria nem se apercebe da gravidade do problema. A gravidade do problema conduz-nos à inevitabilidade entre os benefícios da tecnologia e a nossa privacidade e libardade.

O Covid-19 tem mostrado este conflito muito claramente. Em países que estavam dispostos a utilizar os dados pessoais da população – como, por exemplo, Hong Kong, Singapura, Taiwan ou a Coreia do Sul, a subida da curva nunca foi muito acentuada, tendo estes países estabilizado a situação mais rapidamente. Não há dúvida que utilizando dados pessoais podemos tornar as políticas governamentais mais eficazes. Mas tudo isto tem um custo – a nossa privacidade e liberdade.
Yuval Harari, autor dos best-sellers Sapiens, Homo Deus e 21 Lições para o Século XXI pinta claramente a possibilidade de um futuro distópico. Mostra que a disrupção tecnológica é uma das ameaças existenciais que a Humanidade enfrenta no século XXI. Se queremos sobreviver a este século, está na altura de lidarmos com isto de forma séria, concertada e de olhos bem abertos.

Tornámo-nos criaturas capazes de ser pirateadas. Hoje, a biotecnologia, aliada à tecnologia da informação, permite que um governo ou uma empresa me conheçam melhor do que eu me conheço a mim próprio. Um sistema que me conheça melhor do que eu é capaz de prever os meus sentimentos e as minhas decisões, manipular os meus sentimentos e as minhas decisões, bem como, em último caso, tomar decisões por mim.

A ligação entre inteligência artificial e biometria significa que nos tornaremos marionetas nas mãos das grandes empresas de tecnologia como o Facebook, a Google e outras. É fácil perceber como tudo isto pode transformar-se num problema grave para a democracia liberal e para o capitalismo.

A democracia e as economias de mercado, os pináculos gémeos do liberalismo, baseiam-se na ideia filosófica de livre arbítrio. Ideias como «o eleitor é que sabe» e «o cliente tem sempre razão» estão profundamente enraizadas nesta mundividência liberal. Ambas defendem que é o indivíduo quem tem autoridade máxima sobre o poder de exercer a sua liberdade de escolha.

Hoje sabemos que o livre arbítrio foi sempre uma ilusão. Ou melhor, os seres humanos têm vontade própria e tomam decisões, mas não são livres de escolher a sua vontade. As nossas escolhas são altamente influenciadas pela genética, pelas hormonas, pelo meio social, pela educação, pelas nossos convicções ideológicas e religiosas e por aí em diante, coisas que, definitivamente, não escolhemos. Basicamente, somos já uns algoritmos. 

Mas até hoje ninguém conseguia entender-me melhor do que eu. Com o casamento entre a tecnologia da informação e a biotecnologia, uma máquina, num futuro não muito longínquo, poderá perfeitamente conhecer-nos melhor do que nós nos conhecemos. E isto é uma situação completamente nova.

O eleitor pode “não saber melhor.” O cliente pode “não ter razão.”

A humanidade pode tomar más decisões. São eleitos maus governantes. Porém, as democracias liberais tiveram sempre uma grande vantagem sobre os outros regimes: se se tivessem cometido erros, estes poderiam ser facilmente corrigidos, sem violência, na altura das eleições. Mas porquê esperar pelas eleições? Por que não evitar o erro humano antes de este ser cometido? Teoricamente, podemos construir um algoritmo que saiba melhor do que nós quem é que nos devia liderar tornando, assim, as eleições irrelevantes.

O mesmo acontece com o capitalismo. O «laissez-faire», quando não regulamentado, sempre teve desvantagens. Ainda assim, com todos os seus defeitos, foi o sistema económico mais eficiente e produtivo de todos. A capacidade de processamento da informação de mercado amplamente maior permitiu-lhe superar todos os outros sistemas de planeamento central. Mas com o avanço da tecnologia e de big data, talvez um supercomputador possa, pelo menos em teoria, ser mais eficiente.

Jack Ma, fundador do Alibaba, disse, numa conferência, em 2017: “Ao longo dos últimos 100 anos acreditámos que a economia de mercado era o melhor de todos os sistemas mas, dado o acesso a todo o tipo de informação, é possível que encontremos a mão invisível do mercado». Encontrámo-la e direcionámo-la? Antecipámo-la? Desativámo-la? Não especificou.

Big data e uma maior tecnologia de processamento de informação conseguem ajudar os governantes a permanecer no poder. A tecnologia da informação não dará aos governantes apenas informação sobre o que as pessoas querem, mas também meios para manipular esses desejos. Os algoritmos não só conseguem perceber os desejos dos eleitores mas e os algoritmos conseguem ajudá-los a realizá-los. A legitimidade que advêm de ser eleito pelo povo pode passar a ser irrelevante. Isto seria «1984» e «Admirável Mundo Novo» juntos num só cenário.

Mesmo conseguindo travar regimes totalitários, a tecnologia poderá na mesma minar a liberdade humana. As pessoas confiarão cada vez mais na inteligência artificial para tomar decisões por elas. Em última instância, a autoridade passará de nós para as máquinas. Talvez no futuro, e em nome da excelência, com quem casamos, onde trabalhamos ou se o Banco Central deve ou não ajustar as taxas de juro são decisões que deixarão de estar nas nossas mãos. Uma ideia tenebrosa…

Todavia, nós não estamos necessariamente condenados a uma vida de irrelevância e tirania. A tecnologia, por si só, não é determinista. Não leva, necessariamente, à tirania. Como Harari enfatizou, a sua função é traçar os vários cenários. Cabe-nos a nós escolher o caminho por onde seguir viagem. A revolução industrial fez nascer tanto as democracias liberais como o fascismo e o comunismo.

Também os algoritmos só podem fazer o que lhes dissermos. Na base estão objetivos e juízos de valor. Mas isto levanta outras questões. Quem decide quais devem ser estes objetivos e juízos de valor? E se os inputs estiverem errados? E se parecerem bons mas tiverem consequências inesperadas?

Até agora, as decisões mais importantes do mundo estão a ser tomadas por uma elite privilegiada em Silicon Valey que representa ninguém. É desconcertante, no mínimo, que decisões básicas e fundamentais que moldarão o futuro da humanidade e da própria vida envolvam apenas um pequeno grupo de engenheiros informáticos. Está na altura de a comunidade global acordar para isto e estabelecer regras globais de jogo no que respeita a regulamentação de privacidade e proteção de dados.

O professor de Oxford, Nick Bostrom, que inventou o termo «risco existencial», salientou que a única maneira de criar uma superinteligência segura é criar uma que partilhe dos nossos valores, que aprenda aquilo que valorizamos, com um sistema motivacional configurado para seguir esses mesmos valores. Mas o que são os “nossos” valores, quem somos “nós” e quem de “nós” decide? Um enorme “nós” elegeu Trump, partilhando os seus valores…

Tendo em conta o elevado risco, seria normal que mais pessoas estivessem preocupadas com isto. Por natureza, subestimamos o destino das gerações futuras. Permitir que uma inteligência artificial superpoderosa se apodere, lentamente, de nós, sem uma reflexão antecipada, poderá ser a decisão mais catastrófica da humanidade.
 
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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