O 25 de Abril deixou de ser a festa da liberdade de um povo para ser o
totem de um clã político homenageando apenas a risível perpetuação de si
mesmo. Artigo de Miguel Granja para o Observador:
Em Do Espírito das Leis, ao desenvolver, à boa maneira aristotélica, a
sua teoria dos três tipos de governo, Montesquieu distingue a
república, a monarquia e o despotismo em função de duas noções centrais:
a natureza e o princípio do governo: «a sua natureza é aquilo que o faz
ser como é, e o seu princípio é aquilo que o faz agir. A primeira
constitui a sua estrutura particular; o segundo constitui as paixões
humanas que o fazem movimentar-se» (Primeira Parte, Livro Terceiro, I).
Nas palavras de um dos melhores leitores de Montesquieu, Raymond Aron,
em As Etapas do Pensamento Sociológico: «A natureza de um governo é o
que o faz ser o que é. O princípio do governo é o sentimento que deve
animar os homens no interior de um tipo de governo, para que este
funcione harmoniosamente».
O princípio da república, em Montesquieu, é a virtude (ainda Aron: «o
que não significa que na república os homens sejam virtuosos, mas que
deveriam sê-lo, e que as repúblicas só serão prósperas na medida em que
os cidadãos forem virtuosos»). Esta virtude republicana, contudo, não é
uma virtude moral: consiste antes numa virtude política: é «o amor às
leis e à pátria» (Livro Quarto, V), é «o amor pela república» e «tanto o
último homem do Estado pode ter esse sentimento quanto o primeiro»
(Livro Quinto, II). Numa palavra, a virtude republicana é o princípio
que dá sentido à regra de que «aquele que manda executar as leis sente
que ele próprio a elas está submetido, e o peso delas terá de suportar»
(Livro Terceiro, III).
Portanto, para que uma república funcione harmoniosamente, manda a
virtude que lhe serve de princípio que ninguém possa vetar sobre si
mesmo a incidência da lei, colocando-se, por via de malabarismos
isencionais próprios de déspotas, acima dela. Colocar-se acima da lei é
colocar-se acima da própria república. Colocar-se acima da lei é
colocar-se num estado de meta-lei, de lei-acima-da-lei, de
lei-para-além-do-bem-e-do-mal-da-lei, de lei-anti-lei, de
lei-fora-da-lei que – mais tempo, menos tempo – degenerará no
abastardamento, no desvirtuamento (desvirtuar é negar a virtude) da
república. Colocar-se acima da lei é colocar-se acima da república, o
que significa que, suspenso o princípio que a anima, já não estamos na
presença de uma república. A república tem os olhos voltados para baixo,
não para cima. Montesquieu apresenta as alternativas: ou é monarquia ou
é despotismo.
Neste sentido, já não é de república plena e plenamente virtuosa que
falamos quando, em plena pandemia que serve de justificação para o uso
ad nauseam de expressões como «economia de guerra» ou «a batalha das
nossas vidas», bem como para a suspensão inédita de direitos, liberdades
e garantias dos representados (convém talvez lembrar, os genuínos
titulares e destinatários da soberania democrática nos termos da
Constituição), os representantes da república, servidores daqueles e
instrumentos da sua vontade, se isentam descaradamente da obrigação de
confinamento e da proibição de ajuntamento que impõem (por via do «uso
da força física» que Weber identificava como «o meio específico do
Estado») aos cidadãos da república, para celebrarem – nos 46 anos de uma
revolução que derrubou um regime político suspenso de democracia e de
liberdade – uma democracia e uma liberdade suspensas e em quarentena
(sob pena de multa e prisão). Não perceber o ridículo grotesco de uma
«des-virtude» tão flagrante diz muito do grau de alheamento próprio e de
desprezo alheio em que há muito vive uma grande parte dos titulares dos
órgãos de soberania desta república: «Uma prostituta de categoria, uma
rameira de vestes prateadas, / Que levanta a cauda do vestido, mas
arrasta a alma pela lama», segundo um dramaturgo remoto.
Não deixa, pois, de ser irónico que seja justamente a celebrar um
aniversário do 25 de Abril que constatemos que o 25 de Abril morreu. Uma
data, qualquer que ela seja, que deixa de arrancar o seu sentido e a
sua alma, a anima que a anima (a «paixão humana» de Montesquieu) dos
seus destinatários honorários para ser a pedante soirée dos seus
mordomos possidónios, é uma data morta. Paz à sua alma. Figura ainda
embalsamada no calendário da comunidade mas apenas como quadro
emoldurado de finado em casa de família que o ignora.
O 25 de Abril deixou de ser a festa da liberdade de um povo para ser o
totem de um clã político homenageando apenas a risível perpetuação de
si mesmo. Regressemos àquela quinta-feira de 1974 e voltemos a pôr os
pontos nos is e os cravos nos canos das espingardas: não é o 25 de Abril
que dá sentido à liberdade: é a liberdade que dá sentido ao 25 de
Abril. Não é o 25 de Abril, solenizado uma vez por ano, que dá sentido à
liberdade: é a liberdade, exercida todos os dias do ano por pessoas
livres, que dá sentido ao 25 de Abril. Não é a liberdade que é filha do
25 de Abril: é o 25 de Abril que é filho da liberdade. Não é o 25 de
Abril que liberta os homens: são os homens que libertam o 25 de Abril.
Triste geração de representantes esta, pretendendo poder celebrar a
liberdade sem pessoas livres que a possam celebrar.
O 25 de Abril de 2020 não celebra o 25 de Abril de 1974. A farsa
funerária é total: estão proibidos todos os velórios, menos o da própria
república. Na «casa da democracia», agora transformada em mausoléu com
cravos a servir de grinaldas fúnebres e a «Grândola» a servir de
Réquiem, não estarão reunidos os pais nem os filhos do 25 de Abril – mas
apenas, exalando o cheiro do gel desinfectante e vestindo a cor negra
dos defuntos, os seus coveiros.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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