Com quase todos os países da Europa em quarentena, a Suécia mantém a
maioria das escolas funcionando, não fechou as fronteiras e até abriu as
praças mais cedo. Mas as decisões não são unânimes. Mariana Fernandes,
para o Observador:
Parece algo descabido que seja uma frase de Greta Garbo, a conhecida
atriz sueca dos anos 20 e 30, a descrever a forma como a Suécia está a
responder internamente à pandemia de coronavírus que está a assolar o
mundo. Em 1932, no filme “Grand Hotel”, na pele de uma bailarina russa,
Garbo atirou: “Quero estar sozinha!”. A frase,
mais do que se tornar um símbolo do cinema do século XX, tornou-se
também a imagem de marca da atriz. Mas Greta Garbo, já depois do final
da carreira e a falar sobre a vida pessoal, corrigiu a citação. “Nunca
disse ‘quero estar sozinha’. Só disse ‘quero que me deixem sozinha’.
Ora, é precisamente esta frase, a que exige independência e silêncio,
que o investigador Lars Trägårdh escolhe para justificar a maneira como
a Suécia está a atuar perante a pandemia. “A resposta da Suécia e
respetivo resultado vão certamente ser analisados nos próximos anos. Mas
claro que temos vantagem estrutural. Somos um país disperso em termos
de população, temos muitas casas só com uma pessoa e a distância social é
basicamente uma característica nacional. Durante uma pandemia, parece
que esta preferência peculiar pode muito bem ser uma vantagem”, explicou o especialista no estado social nórdico à Foreign Policy.
Fronteiras e escolas abertas para alunos até aos 16 anos
Tudo isto porque, no panorama atual europeu e mundial, a Suécia é uma exceção à regra. Segundo os dados do Worldometer,
o país da Escandinávia tem nesta altura 3.700 casos positivos da
Covid-19 e 110 vítimas mortais, face a uma população semelhante à
portuguesa, sempre à volta dos 10 milhões de habitantes. A resposta dos
suecos ao avançar da pandemia, porém, contrasta em toda a linha com as
medidas que têm multiplicado um pouco por todo o mundo. Atualmente, e
depois da quarentena imposta no Reino Unido no início da semana, a
Suécia é mesmo o maior país europeu que ainda não implementou uma
quarentena encorajada e generalizada — e onde as aglomerações de pessoas
a partir dos 50 elementos só foram proibidas na passada sexta-feira.
Andreia Rodrigues, portuguesa que vive em Estocolmo, explica ao
Observador que a decisão de proibir ajuntamentos de mais de 50 pessoas
(até sexta-feira, era permitido organizar eventos até 500 pessoas) foi a
“mais agressiva” tomada pelo governo até agora. “Eles têm falado na
possibilidade de aplicar mais medidas mas ainda não tinham feito nada.
Agora, de 500 pessoas, passaram então para 50. Acho que também teve
muito a ver com as notícias internacionais. No mundo inteiro, começou a
falar-se muito na Suécia”, acrescenta.
Neste momento, no país escandinavo, só os liceus e as universidades
estão encerrados. Até aos 16 anos, todas as crianças continuam a ir à
escola diariamente e sem qualquer constrangimento. Concertos e grandes
eventos desportivos foram cancelados, as manifestações estão proibidas
por ultrapassarem precisamente o limite das 50 pessoas, mas os centros
comerciais e hipermercados permanecem abertos. Cafés, restaurantes e
bares funcionam normalmente — a única limitação é o serviço de bar, que
está proibido, com os estabelecimentos a disponibilizarem apenas serviço
diretamente à mesa. As fronteiras permanecem abertas, ao contrário do
que acontece nos países vizinhos, Noruega e Dinamarca. E os únicos voos
cancelados são os das companhias aéreas que reduziram e eliminaram
ligações. Não há, para além disso, qualquer indicação de uma quarentena
obrigatória para estrangeiros que cheguem ao país. Só pessoas
recém-chegadas que demonstrem sintomas têm de ficar em isolamento.
Cafés continuam funcionando |
Quanto aos suecos, a grande maioria continua a ir trabalhar sem
restrições. O teletrabalho foi aconselhado pelo governo e pela Agência
Pública de Saúde, que está a liderar a reação à pandemia, mas a decisão
final sobre se um trabalhador fica ou não em casa a desempenhar funções
está entregue à entidade patronal. No caso dos casos positivos
confirmados, as instruções oficiais indicam que devem ficar em casa mas,
dois dias depois de já não terem sintomas, têm liberdade para sair e
cumprir a rotina habitual. A ideia principal que é transmitida é a de
que a proteção deve ser feita aos grupos de risco, idosos e restantes, e
que a população mais jovem deve compensar o desacelerar quase
inevitável na economia e as crescentes dificuldades nos negócios mais
pequenos.
Este último ponto, desencadeado pela menor concentração de pessoas
nas ruas — apesar de não existirem restrições rígidas, a verdade é que
os suecos têm adotado individualmente uma maior distância social —,
levou a uma decisão do Governo que é altamente contrastante com tudo o
que está a acontecer no resto do mundo. Esta semana, o Executivo decidiu
decretar a abertura prematura das esplanadas (só costumam abrir a 1 de
abril, quando o tempo melhora) para exponenciar a procura pelos cafés e
restaurantes que têm estado mais vazios desde o alastrar do surto,
principalmente na capital, Estocolmo.
Políticos seguem técnicos e a confiança social generalizada nas instituições
Lars Trägårdh, o mesmo investigador que utiliza a frase de Greta
Garbo que abre este texto, explica que as decisões têm sido
maioritariamente tomadas pela Agência Pública de Saúde e que o anuir do
governo Partido Social-Democrata Sueco, liderado pelo primeiro-ministro
Stefan Löfven, está relacionado com uma espécie de “tradição” nacional.
“A partir do momento em que a Agência Pública de Saúde tem a função de
ser a autoridade que lidera esta crise, é esperado do primeiro-ministro e
do Governo que ouçam e sigam os conselhos. Em contraste, na Dinamarca e
na Noruega, os líderes políticos foram contra as agências públicas de
saúde locais, principalmente na decisão de encerrar as fronteiras. Isso
ainda não aconteceu na Suécia”, adianta Trägårdh.
A explicação do investigador é simples: apesar de ser o governo a
decretar os objetivos e os orçamentos das agências públicas, essas
agências públicas têm total liberdade para agir, o que significa que a
liderança política não tem poder para intervir diretamente no
funcionamento diário do organismo. Para além de ser uma “tradição”, como
lhe chama Trägårdh, é uma linha de orientação que está prevista na
própria Constituição sueca. A frase ‘estamos a seguir as recomendações
da Agência Pública de Saúde’ tem sido dita e repetida por membros do
Governo, como uma espécie de mantra que justifica as decisões tomadas e
engrossa a confiança social nas instituições que têm poder. E é aqui que
chegamos à segunda metade da base que sustenta esta lógica.
A confiança generalizada que existe no país — confiança mútua entre o
Governo e os cidadãos e entre os próprios suecos — é o motor que acaba
por alimentar a curta dimensão das medidas tomadas até agora. Ou seja,
existe uma assunção forte por parte das instituições governamentais, de
que as pessoas vão acatar as recomendações, evitar grandes aglomerados,
trabalhar em casa se possível e não realizar deslocações dentro do país
sem a necessidade de regras proibitivas rígidas.
O primeiro-ministro Stefan Löfven, numa das declarações mais recentes
que fez ao país, apelou precisamente à responsabilidade social e aos
sacrifícios pessoais que terão de ser feitos. “A única maneira de gerir
esta crise é encará-la enquanto uma sociedade, com toda a gente a
assumir responsabilidade por si mesmo, por cada um e pelo nosso país. Há
momentos cruciais na vida em que temos de fazer sacrifícios, não só
para nosso bem mas também pela responsabilidade que temos para com os
outros. Esse momento é agora. Esse dia chegou. E esse dever pertence a
todos”, disse Löfven. Resumindo: as pessoas acreditam que o Governo está
a tomar as medidas indicadas, o Executivo acredita que as pessoas vão
acatar as recomendações e cada pessoa acredita que o vizinho do lado vai
cumprir o aconselhado, tal como eles próprios estão a fazer.
A tradição da independência das agências públicas, a confiança social
e, claro, a preocupação com o setor económico e com um quase certo
desacelerar das finanças nacionais: são estes os três pilares da
resposta sueca ao coronavírus. Andreia Rodrigues, ao Observador, garante
que a questão da confiança é mesmo o detalhe mais importante do que se
passa atualmente na Suécia. “O que é sempre transmitido nas conferências
de imprensa é que não são necessárias mais medidas porque as pessoas
acatam as recomendações. Não estão a apostar em medidas fortes porque as
pessoas não gostam de ser forçadas. Acreditam que aqui as pessoas são
mais responsáveis. O problema é que não é propriamente isso que está a
acontecer”, indica Andreia. A emigrante portuguesa acrescenta que,
apesar de ser notória a redução de pessoas nas ruas da capital sueca, o
movimento “à sexta-feira à noite ou ao sábado à noite é igual”.
Comunicação social e redes sociais críticas sobre modelo seguido
Uma resposta que, contudo, está longe de ser unânime. As críticas à
atuação da Agência Pública de Saúde têm sido muitas, principalmente na
comunicação social e nas redes sociais, onde a inquietação com a
discrepância entre as medidas da Suécia e as do resto do mundo tem sido
notória. Atualmente, segundo
o Financial Times, muitas das críticas estão relacionadas com o facto
de nem a Agência Pública de Saúde nem o governo já terem adiantado se
vão restringir as deslocações internas ou fechar as estâncias de ski
antes das férias da Páscoa, altura em que milhares de pessoas viajam
para o norte do país para passar alguns dias. Tanto a autoridade de
saúde, como o governo, já abriram a porta à necessidade de medidas mais
restritivas com o avançar da propagação da Covid-19, demonstrando
preocupação com a possibilidade de o vírus sair das cidades para zonas
mais rurais. Os responsáveis técnicos e políticos admitiram mesmo que
atualmente o risco de contágio comunitário é “muito alto”, mas ainda não
avançaram com quaisquer medidas palpáveis e específicas.
Andreia Rodrigues explica que a “opinião pública está dividida”. “As
pessoas mais velhas, com mais de 50 anos, têm tendência para concordar
com o governo. Nunca questionam as decisões das instituições, nem do
governo nem da Agência Pública de Saúde. A opinião é diferente nas
pessoas mais novas e na comunidade de emigrantes, que é bastante grande.
A camada mais jovem da população está preocupada”, garante.
Estocolmo sem quarentena. |
A 20 de março, na semana passada, vários especialistas da comunidade
científica sueca juntaram-se para assinar um artigo de opinião conjunto,
publicado no jornal Svenska Dagbladet, onde manifestavam preocupação
com a ausência de medidas tomadas. “A Agência Pública de Saúde deve
recomendar rapidamente e diretamente a distância social para todos — não
apenas para aqueles com mais de 70 anos. Mais medidas, com maior
alcance, são necessárias”, podia ler-se no artigo. O problema é que uma
sondagem, citada pela Foreign Policy, indica que a grande maioria dos
suecos acredita e confia muito mais nos serviços e na autoridade de
saúde do que na comunicação social.
Joacim Rocklov, epidemiologista da Universidade Umea, no norte da
Suécia, tem sido uma das principais vozes céticas em relação à atuação
dos poderes de decisão do país. “Não percebo porque é que a Suécia tem
de ser tão diferente dos outros países. Isto é uma experiência
gigantesca. Não fazemos ideia de nada. Pode funcionar. Mas pode ir na
direção errada de uma forma louca”, disse
Rocklov ao Financial Times. O especialista mostrou ainda preocupação
com o sistema de saúde sueco que, pelo menos em Estocolmo — onde se
encontra o grande epicentro do surto no país e onde a taxa de
mortalidade tem subido significativamente —, parece estar já a atingir
um limite considerável. “Existe o grande risco de a Suécia entrar em
quarentena quando o sistema de saúde já estiver em crise”, atira Joacim
Rocklov.
Outra das questões que têm sido frequentemente criticadas diz
respeito ao critério dos testes. Atualmente, só idosos, pessoas que
pertencem a grupos de risco, hospitalizados e profissionais de saúde
realizam o teste de despiste à Covid-19. Alguém que tenha sintomas e que
contacte a linha de apoio à saúde recebe unicamente a recomendação para
ficar em casa.
Neste momento, com o número de infetados já perto dos 3 mil e a
mortalidade a ultrapassar as sete dezenas, a Suécia ainda procura manter
a normalidade, proteger os grupos de risco, esperar por uma eventual
imunidade de grupo e não desequilibrar (ainda mais) as balanças da
economia.
A “experiência gigantesca”, como lhe chama Joacim Rocklov, pode
provar-se o modelo mais inovador e eficaz da Europa. Mas também pode
revelar-se uma reação lenta que tornar-se-á destrutiva com o avançar da
pandemia no país nórdico. Por agora, os ensinamentos de Greta Garbo, nos
longínquos anos 30, parecem comandar as decisões de quem gere a Suécia.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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