A saúde pública é um bem que o poder público tem o dever de proteger,
mas isso precisa ser feito de forma que não se restrinja liberdades de
forma desnecessária ou abusiva. Editorial da Gazeta
observa que bloqueios nos Estados podem estrangular o país - e
blogueiro aqui acrescenta: até na Europa deve ser mais fácil passar de
um país para o outro. Parece que vivemos numa ditadura comunista:
Na quarta-feira, brasilienses que foram a um posto de saúde que
aplicava a vacina contra a gripe no sistema de drive-thru só conseguiram
se imunizar porque haviam sobrado algumas doses do dia anterior. Como o
voo que levaria um novo lote de vacinas já tinha sido cancelado,
decidiu-se realizar o trajeto entre a capital paulista e a capital
federal de caminhão, com chegada prevista às 14 horas. No entanto, o
veículo acabou retido em Goiás, atrasando ainda mais a viagem. O
episódio, ainda que de alcance bastante limitado, mostra como algumas
ações de governadores e prefeitos tomadas em nome do combate ao
coronavírus podem estar cruzando um limite perigoso em relação aos
direitos individuais e, neste processo, até mesmo atrapalham o objetivo
que dizem querer alcançar.
Levantamento do jornal O Estado de S.Paulo publicado na quarta-feira,
25 de março, afirmava que havia bloqueios de algum tipo em pelo menos
22 estados brasileiros. Não se trata apenas das chamadas “barreiras
sanitárias”, em que pessoas que chegam a um local têm sua temperatura
medida, e que são permitidas pela lei: a maioria das restrições afeta o
direito de ir e vir, com fechamento total de divisas (caso, por exemplo,
de Santa Catarina, Piauí e Ceará) ou proibição do transporte de
passageiros interestadual, ou então com o bloqueio físico à entrada de
várias cidades. Wilson Witzel, governador do Rio de Janeiro, interveio
até mesmo nos aeroportos, proibindo voos provenientes de certos países
ou estados e gerando reação imediata da Agência Nacional de Aviação
Civil.
O artigo 22, inciso XI da Constituição afirma que apenas a União pode
legislar sobre trânsito e transporte, o que de imediato proíbe ações
unilaterais dos estados no fechamento de suas divisas. Mas, em seu
parágrafo único, acrescenta que “lei complementar poderá autorizar os
estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas
neste artigo”. No caso, a Lei 13.797/20, votada enquanto se fazia
esforços para repatriar brasileiros na China, afirma que as autoridades,
“no âmbito de suas competências”, poderiam adotar “restrição
excepcional e temporária de entrada e saída do país, conforme
recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa), por rodovias, portos ou aeroportos”, ou seja, sem
nenhuma referência a fechamento de divisas estaduais.
Foi só em 20 de março, pela Medida Provisória 926, que Bolsonaro
incluiu a “locomoção interestadual e intermunicipal” entre as atividades
sujeitas a restrição. Governadores e prefeitos viram na MP um sinal
verde para fechar divisas e acessos, e simplesmente ignoraram a
necessidade de recomendação da Anvisa. Por fim, em 23 de março, o
governo capitulou e publicou resolução assinada pelo diretor-presidente
da Anvisa, delegando às Vigilâncias Sanitárias estaduais a capacidade de
elaborar pareceres que embasassem os bloqueios e, na prática, validando
um “cada um por si” em que até mesmo o transporte de itens valiosos
para a saúde das pessoas acaba prejudicado por fiscais mais “zelosos”,
como na situação que retardou a chegada do lote de vacinas a Brasília.
No dia seguinte, o Supremo Tribunal Federal entrou no imbróglio
quando o ministro Marco Aurélio Mello decidiu liminarmente manter o
poder de estados e municípios sobre os respectivos acessos. Quando o
plenário da corte julgar o mérito da ação proposta pelo PDT, terá de
responder a uma série de perguntas. Fechar as próprias divisas ou
acessos faz parte das “competências” (para usar a expressão da Lei
13.797), respectivamente, de estados e municípios? Se o bloqueio em um
estado ou município também afeta estados e municípios vizinhos, ele pode
ser definido unilateralmente? E, o mais importante: o direito
constitucional de ir e vir não está sendo indevidamente restringido?
Esta última questão, mais que as considerações a respeito de leis
infraconstitucionais, medidas provisórias ou resoluções, deveria nortear
a discussão. Regular as fronteiras nacionais, inclusive com o direito
de barrar a entrada de pessoas em alguns casos, sempre foi prerrogativa
de governos mundo afora, mas o que dizer quando entes subnacionais
impedem o trânsito de brasileiros dentro de seu país? Afinal, não
estamos em estado de sítio, a única situação prevista na Constituição em
que se pode relativizar o direito de ir e vir de forma mais agressiva. O
isolamento adotado como forma de reduzir a velocidade de contágio do
coronavírus é recomendação ou uma obrigação? Os cidadãos continuam a ter
suas necessidades e seus motivos para se deslocar dentro do país; na
impossibilidade de testar rapidamente todos os que pretendem entrar em
uma cidade ou estado, é razoável presumir que toda pessoa que não tenha
febre seja um portador assintomático do vírus, pronto para espalhá-lo no
destino ao qual se dirige?
E, além dos bloqueios, há outras medidas que impedem a circulação de
pessoas e que também devem nos preocupar. É o caso do decreto de Porto
Alegre (RS) que proíbe pessoas acima de 60 anos de sair às ruas – com a
exceção de deslocamentos para vacinação, atendimento médico e compras em
mercados ou farmácias – ou o ainda mais restritivo decreto de Campo
Grande (MS) que impõe toque de recolher em toda a cidade das 20 horas às
5 horas da manhã seguinte, prevendo apreensão de veículos e condução à
delegacia daqueles que não comprovarem motivo aceitável para estar na
rua.
O STF faria bem se analisasse os bloqueios (e outras medidas
restritivas que porventura sejam questionadas na corte) usando o
princípio da proporcionalidade. Parece claro que o crivo da adequação
(“a medida é eficaz para conseguir o objetivo desejado?”) está atendido,
pois, se a intenção é controlar o surto, impedindo a proliferação do
vírus decorrente da entrada de pessoas contaminadas, o bloqueio cumpre
essa função; segue-se o critério da necessidade: há medidas menos
restritivas e igualmente eficazes? Aqui será preciso fazer uma análise
técnica de opções como, por exemplo, a identificação e a quarentena dos
infectados ou que efetivamente apresentem os sintomas da Covid-19. Caso
se conclua que bastam essas ações, este deverá ser o caminho a seguir.
Mas, se elas não forem suficientes, resta a análise final dos bloqueios
pelo critério da proporcionalidade em sentido estrito: o fato de eles
preservarem a saúde de quem já está na área bloqueada compensa a redução
da liberdade advinda desta restrição ao direito de ir e vir?
Conter a disseminação do coronavírus é importante, e os governos não
podem se omitir nessa missão. A saúde pública é um bem que o poder
público tem o dever de proteger, mas isso precisa ser feito de forma que
não se restrinja liberdades de forma desnecessária ou abusiva.
Situações extraordinárias como a causada pela pandemia pedem medidas
extraordinárias e todos os fatores precisam ser colocados na balança. Há
condições muito específicas sob as quais se pode admitir restrição às
liberdades fundamentais, e a defesa dessas liberdades também exige a
aceitação de certos riscos, como lembrou recentemente o colunista da
Gazeta do Povo Guilherme de Carvalho. Por isso, e tendo em mente que a
seriedade da pandemia levará governantes e governados a preferir os
erros por excesso de zelo que por falta dele, é preciso ter bem claros
quais são os limites que convém não cruzar. Houve uma certa naturalidade
com que governadores e prefeitos adotaram os bloqueios e toques de
recolher, e com que eles foram aceitos por parte da população. Pode-se
compreender a reação num primeiro momento, mas é preciso também estar
atento ao risco de que restrições fortes como as que estão sendo imposta
se tornem cada vez mais frequentes por motivos cada vez mais triviais.
Por isso, passado o impacto inicial, agora é preciso enfrentar o tema de
forma desapaixonada e avaliar a adequação das medidas para não deixar
portas abertas ao arbítrio.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário