Meu amigo, hoje reduzido à condição de fantasma, não pode ouvir falar de coronavírus. Paulo Polzonoff Jr. para a Gazeta do Povo:
Hoje o fantasma do meu amigo veio me visitar. Eu estava saindo do
Uber e não senti nenhuma presença assustadora, daquelas de arrepiar os
pelos mais recônditos, nem ouvi meu nome sussurrado do além. Nada disso.
Continuei atravessando a rua (será que olhei para os lados?), pensando o
que eu pensava no caminho para casa: não aguento mais ouvir falar no
maldito coronavírus.
Não me leve a mal. Não tenho nada contra nem a favor do coronavírus.
Quero dizer, o fato de ele (ou ela – não sejamos machistas!) matar
algumas pessoas, sobretudo os mais velhos, me deixa um tanto apreensivo.
Por outro lado, eu o compreendo. O coronavírus, coitado, vive numa
crise de identidade danada. Não sabe nem se é um ser vivo. E por aí
andam dizendo que ele nada mais é do que um punhado de material genético
envolto numa proteína – o que evidentemente o chateia.
Pensava eu, no caminho para casa, em todas as implicações da
atualíssima pandemia de coronavírus. Não na economia ou na política.
Quero dizer, também. Mas pensava principalmente no espírito humano, ou o
que resta dele. Como as pessoas encararão o futuro depois do
coronavírus? E o passado também – por que não? Será o coronavírus o
fenômeno a despertar o lado mais nobre do ser humano? Ou será tão
somente uma tragédia à qual sobreviveremos e que terá servido apenas
para alimentar nossa soberba?
Enfim, essas coisas que a gente pensa numa corrida de quinze minutos de Uber, enquanto consulta as redes sociais.
Bati a porta do carro com medo de irritar o motorista e ser mal
avaliado e me arrastei pela rua de paralelepípedo. Estava cansado,
exausto mesmo, desejando que o coronavírus tivesse outro efeito que não o
comprometimento das vias áreas: que ele acabasse com a capacidade
humana de ser monotemática. Não precisava ser para sempre. Por uns
quinze minutinhos. Só até eu recuperar o fôlego.
Estava quase chegando do outro lado da rua quando o fantasma resolveu
se manifestar. Assim sem querer e muito discretamente, como fazem os
melhores fantasmas. Lembrei do amigo morto e a simples lembrança foi uma
iluminação. Parei para ter certeza de que não enlouquecia, respirei
fundo e me vi subir os poucos lances de escada embriagado com minha
condição de ser vivo no meio do caos.
De repente, o coronavírus deixou de ser uma partícula semiviva no meu
sapato existencial para se tornar um milagre tão admirável quanto um
arco-íris inesperado uma tarde de verão.
Porque, se por um lado o coronavírus e o pânico que o acompanha dão
corpo a um fenômeno psicossocial horrível e vulgar, barulhento mesmo,
por outro o coronavírus, pânico, essa torrente de notícias e mentiras e
piadas e incertezas, e até meu cansaço ali já diante do elevador são uma
prova inegável e inconteste de que eu estou respirando, as sinapses
estão em polvorosa e, caramba!, nesse Universo ainda sou mais do que uma
mera lembrança.
Estou vivo e meu amigo fantasma não está. Queria que ele estivesse.
Talvez ele quisesse estar. Se estivesse vivo, em vez de se fazer
presente apenas como uma (necessária) recordação, meu amigo viveria
comigo essa avalanche de palavras e imagens e dados e opiniões e
disse-me-disses do coronavírus. Eu o imagino me ligando num dia
qualquer, hoje e agora mesmo, só para compartilharmos achismos que não
levam a lugar nenhum. Sinto na voz e no sotaque carregado até seu medo. E
cansaço. Talvez ele até dissesse que pretendia passar o fim de semana
isolado de tudo, só para não ouvir falar dessa ou de qualquer outra
coisa insuportável.
Meu amigo, hoje reduzido à condição de fantasma, não pode ouvir falar
de coronavírus. Nem das estripulias do governo. Nem das reações
raivosas ou ternas das pessoas ao que quer que se escreva nas redes
sociais. Nos últimos anos, meu amigo não pôde ouvir falar de várias
coisas que, acredito, teriam despertado seu interesse, como aquele filme
e aquele livro e todas as polêmicas que surgissem num domingo para
desaparecer numa segunda-feira.
Porque meu amigo é um fantasma, um espírito, uma recordação, um anjo –
em essência, um morto. E, lá do Céu onde o imagino vigilante e risonho,
ele em segredo me inveja imerso no caos enquanto se banqueteia na
perfeita ordem da não-existência.
Já eu, que ainda há pouco cedia à mistura mortal de enfado &
cinismo para me referir ao coronavírus, cheguei em casa, sentei-me no
sofá, liguei a televisão num telejornal qualquer e agora estou aqui
alternando apreensão, indignação, alegria, impotência e raiva em
consequência.
Admirando o caos que só rejeito quando esqueço que ele é apenas mais um sinônimo para “vida”.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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