Quanto tempo aguentamos mais fechados em casa? Quanto tempo aguenta mais
a economia "congelada"? Quanto tempo temos ainda de esperar pelas
soluções terapêuticas? Um ensaio de José Manuel Fernandes, publisher do Observador:
Há dez anos todos começaram a discutir economia. Agora é a vez de
todos serem especialistas em epidemiologia. Há dez anos, quando as taxas
de juro começaram a subir, o então primeiro-ministro mandou instalar em
São Bento um terminal ligado a uma agência económica que lhe dava
informação ao minuto. Rezam as crónicas que o consultava várias vezes ao
dia. Imagino que muitos responsáveis governamentais e políticos não
esperem hoje apenas pela saída do boletim diário da Direcção-Geral de
Saúde com a evolução da situação em Portugal. É natural que perguntem
como foram os números de Itália, quantos mortos houve em Espanha, como
está a França, se a Alemanha sempre se aguenta.
Mais: até os analistas económicos dedicarão neste momento mais
atenção ao que dizem os epidemiologistas do que às últimas cotações dos
mercados bolsistas, pois como notou
o antigo ministro das Finanças Luís Campos e Cunha nenhum modelo
económico tem resposta para uma situação em que se desconhece quando é
que se regressa à vida normal.
E é essa a pergunta que todos fazem.
1. A curva exponencial e a curva em S
A ansiedade dos decisores compreende-se: quando um vírus como o
SARS-CoV-2 – assim se chama o bicho – se começa a espalhar numa
população, numa primeira fase o número de infectados cresce de forma
exponencial, o que faz com que todos os dias o número de novos
infectados seja superior ao do dia anterior, o mesmo sucedendo com o
número de mortos. Só quando as medidas de contenção da propagação do
vírus começam a surtir efeito é que, primeiro, o número de novos
infectados começa a diminuir até que, por fim, deixam de surgir novas
infecções.
A primeira fase do contágio, sobretudo quando não se tomaram medidas
preventivas a tempo e horas, é “necessariamente exponencial” como o
físico e matemático Jorge Buescu explicou em “A matemática que explica o tsunami europeu”, pois estamos perante um vírus para o qual a imunidade é zero.
Conforme se vão aplicando medidas de contenção e “distanciamento
social”, a velocidade a que a doença progride tende a abrandar até ao
momento em que se dá uma inflexão na curva. Continuando a falar de
gráficos – habituámo-nos a eles nos últimos dias –, a curva exponencial
passa então a ser uma curva em S, a curva de que falava Pedro Pita Barros, economista especializado em temas de saúde. Na verdade não há nenhuma divergência
entre os dois académicos, apenas que um olha para o início da curva,
onde ainda estamos, e o segundo para aquilo que deverá ser a evolução da
pandemia ao longo do tempo.
O crítico é sempre saber onde se situa o ponto de inflexão – isto é,
em que momento a curva exponencial se transforma numa curva em S. Esse
ponto de inflexão é detectável quando o número de novos infectados
começa a diminuir de forma consistente.
É por isso que é natural que se procure perceber, com algum
nervosismo, se em Itália já se passou mesmo esse ponto de inflexão ou se
Espanha caminha para se tornar agora na situação mais grave na Europa. A
razão de ser é simples: depois do primeiro caso de infecção confirmado,
ou depois da primeira morte, as curvas exponenciais dos diferentes
países são muito parecidas, quase que diria obsessivamente parecidas,
com poucas excepções. Tendo Portugal tido o primeiro caso mais tarde,
segue as outras curvas com atraso, mas segue-as, pois a matemática do
vírus parece mesmo ser implacável e imperturbável à geografia. A dúvida é
se chegamos ou não mais depressa ao ponto de inflexão.
O debate passa então para saber até que ponto o nosso país, tendo
podido ver o que estava a acontecer aos outros, antecipou as medidas de
precaução e prevenção. Isto é, até que ponto Portugal foi ou não mais rápido do que os outros a responder ao vírus com medidas restritivas.
De uma forma genérica, analisando medida a medida, a resposta é
positiva, sendo que nalguns casos a sociedade civil até antecipou as
medidas oficiais.
Mas hoje, mesmo estando já em estado de emergência, não chegámos
ainda ao lockdown completo de Itália e de Espenha, pelo que aquilo que
ninguém sabe – até porque não decorreu tempo suficiente – é qual o grau
das restrições necessárias para conter os contágios e forçar a curva a
inflectir sem chegar a essas medidas extremas, de desespero.
2. A dificuldade das previsões
A dificuldade de fazer previsões – e nós em Portugal já tivemos na
mesma semana duas previsões diferentes sobre o momento em que ocorreria o
número máximo de casos: primeira deveria ser em meados de Abril, agora
já só ocorrerá em Maio – é agravada por uma enorme falta de dados ou
pela falta de fiabilidade dos dados existentes.
Miguel Gouveia, um outro economista da Saúde, num texto publicado no
Facebook, reflecte sobre as suas dificuldades em construir um modelo
para esta epidemia, mesmo um modelo simples e menos complexo do que o
que está a ser utilizado pelos técnicos da Direcção Geral de Saúde. Nota
ele, por exemplo, que nem temos a certeza sobre a verdadeira
infecciosidade do Covid-19 pois a informação disponível, mesmo na
literatura académica, baseia-se quase toda nos dados chineses, sobretudo
de Wuhan. Ora, nota aquele autor, “esses dados foram controlados
politicamente e a informação que ficou disponível passou por filtros
políticos que tornaram difícil avaliar a sua relevância”. Para além
disso, os modelos de infecciosidade dependem não apenas da capacidade do
vírus se propagar, mas também do número de interacções sociais. Ora
nada garante que o número de interacções sociais em Wuhan seja o mesmo
que em Itália ou em Portugal.
Mas esta é apenas a sua primeira dificuldade. A segunda tem a ver com
o tempo médio que uma pessoa anda a espalhar a doença. A literatura
chinesa apontou para 2,9 dias, apesar de o período de incubação ser de
14 dias. Como se chegou a uma média tão baixa? Muito por obra e graça
das medidas agressivas de confinamento seguidas pelas autoridades
chinesas, assim como pela realização de testes em grande número, para
identificar rapidamente portadores assintomáticos.
Nada disto tem sido feito em Portugal, como não tem sido feito em
Itália ou em Espanha, mas foi na Coreia do Sul e, em menor escala na
Alemanha, apresentando esses países curvas que se diferenciam claramente
das restantes.
Finalmente há um ponto que tem vindo a ser levantado nos últimos dias
e que também pode baralhar as contas todas: poderem existir muito mais
infectados do que aqueles que aparecem nas estatísticas. Em Espanha um
catedrático de análise matemática da Universidade de Sevilha estima que o número real de infectados seja cerca de dez vezes o número oficial.
Há quem defenda que em Itália a proporção é a mesma. E na Universidade
Oxford um grupo de académicos foi ainda mais longe e publicou um estudo
onde se sugere que metade da população do Reino Unido já estaria
infectada. Ora, se esta última hipótese for verdadeira, então “a taxa de
internamento e a taxa de mortalidade da doença são muito pequenas e
muito em breve haverá tanta gente com imunidade que a doença
desaparecerá devido à imunidade de grupo”.
3. E se a onda contágios regressa?
Mesmo assim, mesmo com todos estes pontos de interrogação, teve de
ser com base em modelos que os decisores políticos fizeram as suas
opções, sendo que o mais famoso de todos esses modelos acabou por ser o
desenvolvido pela equipa do Neil Ferguson do Imperial College de
Londres. Nesse trabalho
estudaram-se basicamente dois cenários, designados como sendo de
“mitigação” e de “supressão”. O primeiro correspondia à política que o
Reino Unido pretendia adoptar e que apostava no controlo da doença sem
medidas radicais de forma a alcançar mais rapidamente a imunidade de
grupo no conjunto da população. Ora, o modelo do Imperial College
mostrava que só com essas medidas “leves” o vírus se espalharia tão
depressa que rapidamente haveria um número tão grande de doentes que os
serviços de saúde não teriam capacidade de os tratar. Ou seja,
aconteceria o que aconteceu em Itália e começa a acontecer em Espanha,
estimando-se nesse modelo um número de mortes intoleravelmente elevado.
O governo de Boris Johnson,
e também o de Donald Trump, optou assim por mudar de política e adoptar
medidas mais restritivas, mais agressivas e muito mais penalizadoras
para a actividade económica. Em maior ou menor grau, a adopção das
políticas de “supressão” tornou-se regra em toda a Europa, sem sempre
reunindo consenso científico e político (como na Alemanha), existindo apenas dois países que claramente optaram pela via mais leve da “mitigação”: a Holanda e a Suécia.
Mas a leitura atenta do estudo
da equipa de Neil Ferguson do Imperial College suscita questões que têm
escapado ao debate público. A ênfase tem sido colocada em “aplanar a
curva”, isto é, em fazer sobretudo com que o ritmo de subida do número
de contágios seja mais lento (a curva inicial seja menos inclinada), o
que tem como efeito afastar o dia em que se dá o momento de inflexão. O
pico da epidemia passa a ser controlável – o número máximo de doentes ao
mesmo tempo fica dentro dos limites da capacidade dos sistemas de saúde
–, mas mais distante no tempo.
Isto significa que a estratégia de “supressão” não só obriga a
medidas mais drásticas de afastamento social, com consequências mais
pesadas para o funcionamento da economia, como o “aplanar a curva” faz
com que a crise dure mais tempo.
Por isso um dos temas discutidos no trabalho de Neil Ferguson é
também o que acontecerá no momento em que inevitavelmente se aligeirarem
as medidas de lockdown tomadas para prevenir o contágio, e a sua
previsão é sombria: o contágio regressará. Menos virulento, mas
regressará. Teríamos assim de viver em sucessivos “pára-arranca” até
conseguir a imunidade de grupo, ou até chegar a vacina.
Se pensarmos que estamos apenas no início deste processo, numa altura
em que as curvas ainda parecem descontroladas em boa parte dos países
ocidentais, onde ainda nem sequer é certo que Espanha não venha a ser
uma nova Itália, ou que a França se aguente, ou que Nova Iorque não seja
o primeiro grande estado americano a soçobrar, ou ainda que o Reino
Unido se discipline, ou que, ou que, ou que, a ansiedade dos que olham
para os números cresce.
Nouriel Roubini, o economista que viu vir a crise de 2008, já fala de uma depressão maior do que a que então aconteceu.
O seu ponto é simples: nas duas últimas crises (1929 e 2008) os
mercados bolsistas caíram 50%, o mercado de crédito congelou e o
desemprego disparou mais de 10%, mas tudo isto demorou três anos a
acontecer. Agora aconteceu quase o mesmo em apenas três semanas. Os
macroeconomistas costumam falar de recessões em V (quedas abruptas
seguidas de recuperações rápidas, o que todos desejam), em U (com
recuperações demoradas) e em L (seguidas por períodos de estagnação).
Roubini diz que neste momento só podemos falar de uma recessão em I: uma
linha vertical a ir pelo precipício abaixo.
4. Não se mata o que não está vivo
E por quanto tempo? Aí está a dúvida a que ninguém pode seriamente
responder pois além de não se dominarem ainda todas as variáveis da
curva epidemiológica, como explicámos atrás, ninguém é capaz de colocar
uma data certa para que se encontre uma solução terapêutica para a
doença causada pelo SARS-CoV-2. Porque na verdade não há nada mais
difícil de combater do que algo a que nem podemos verdadeiramente chamar
um ser vivo, pois não tem vida autónoma fora das células que infecta.
Usando uma expressão feliz, os vírus são muito difíceis de matar porque não estão vivos.
Basta pensarmos nos anos, e nos recursos, dedicados à luta contra o
VIH, o vírus da sida, para se perceber a dimensão do desafio.
No caso concreto do SARS-CoV-2 trata-se de um coronavírus – um nome
que deriva do facto de o envelope de proteínas que contém o fragmento de
material genético, uma simples sequência de RNA, formar uns espigões
que se assemelham, ao microscópio, a uma coroa – que, como outras
famílias de vírus, terá evoluído em morcegos.
A existência de vírus que podem saltar de espécie em espécie é há
muito conhecida, e haverá muitos mais por aí que nunca chegaram a
infectar nenhuma população humana com sucesso. A possibilidade de uma
pandemia era conhecida e não faltavam alertas – da famosa TED Talk de Bill Gates, que tem doado centenas de milhões à investigação, à agora arrepiante de ver série da Netflix Pandemia. Faltaram foram medidas preventivas suficientes.
Sucede por outro lado que, para que um vírus tenha sucesso, é necessário que consiga espalhar-se com facilidade – como sucede com o nosso coronavírus,
uma vez que cada pessoa contagiada infecta em média mais de uma pessoa,
o que explica as curvas exponenciais de progressão da doença – e que
não seja tão letal que mate rapidamente o seu portador. Outros vírus,
como o SARS e o MERS, são muito mais letais e por isso, ao matarem
rapidamente os seus portadores, reproduzem-se menos. Numa lógica
evolutiva, têm “menos sucesso”. Alguns dos vírus com mais sucesso podem
mesmo estar connosco desde sempre, há milhões de anos, como sucederá com
o vírus do herpes labial, que incomoda mas não mata.
Já o SARS-CoV-2 pode instalar-se em muitos portadores sem que eles
nunca deem por isso – são os chamados assintomáticos – e, assim, andar
por aí sem nós nos apercebermos de que o estamos a espalhar. Um estudo recente publicado na revista Science
referia mesmo que só estaríamos a detectar uma pequena fracção dos
casos (86% das infecções passariam indocumentadas, um número que reforça
as estimativas dos académicos espanhóis e italianos sobre o número
verdadeiro de infectados nos seus países) e que isso permitiria que ele
se tornasse endémico na população humana, tal como sucedeu com o H1N1
que surgiu em 2009 e hoje é um dos vírus da gripe comum à escala global.
Não seria o primeiro coronavírus a tornar-se endémico na população
humana (já vivemos com outros quatro, que saibamos, os 229E, HKU1, NL63,
OC43), mas o facto de ser tão perigoso para alguns sectores da
população não permite, para já, convivermos com ele da mesma forma que
convivemos com os outros vírus que causam a gripe comum. Mas pode ser
que um dia isso aconteça, quando ganharmos imunidade, com ou sem a ajuda
de vacinas.
5. Quanto tempo teremos de esperar pela cura?
Daí a importância de falar de vacinas – e dos 12 a 18 meses que, se
tudo correr bem, demorará a desenvolver uma vacina eficiente. Nunca como
agora houve uma corrida tão determinada para conseguir a milagrosa
vacina, algo ajudado pelo facto de o genoma do SARS-CoV-2 ter sido
descodificado em tempo recorde e logo disponibilizado a toda a
comunidade científica.
Há já três linhas de investigação mais avançadas na produção da
vacina. Uma é dirigida por Ugur Sahin na BioNTech, em Mainz, na
Alemanha, com o apoio da Pfizer e da Fosun e já está a fazer testes em
ratos, estando previstos ensaios em humanos em Abril. No Instituto
Jenner, em Oxford, Sarah Gilbert, a fundadora da empresa de vacinas
Vaccitech, planeia os primeiros testes em humanos para Maio de uma
vacina a ser fabricada pela Advent, mas o governo britânico não prevê
que seja possível aprová-la antes do final do verão de 2020. Finalmente
nos Estados Unidos a Moderna, a trabalhar com o Instituto de Doenças
Infecciosas de Anthony Fauci, iniciou já um primeiro ensaio clínico, mas
os americanos continuam a falar em 12 a 18 meses até a cuidadosa FDA, a
sua agência do medicamento, aprovar uma vacina. Mesmo assim, no caso
desta última vacina, o intervalo de tempo entre os cientistas terem
sequenciado o genoma do SARS-CoV-2 e o produto ser injectado no braço de
um voluntário foi de apenas 63 dias, algo nunca antes conseguido, nem
de perto nem de longe, como o próprio Fauci notou à The Atlantic.
Ao mesmo tempo que decorre esta corrida para produzir uma vacina, nos
hospitais da linha da frente os médicos testam medicamentos já
existentes, alguns deles com décadas, para ver se encontram forma de
contrariar as elevadas taxas de mortalidade sempre que o SARS-CoV-2 se
aloja nos pulmões de alguém com mais de 80 anos, circunstância em que
tem vindo a matar um em cada sete doentes.
Um velho medicamento contra a malária desenvolvido em 1934, a
Cloroquina, foi testado com algum sucesso em França, mas tem muitas
contra-indicações e há que saber mais. Assim como medicamentos contra
outras doenças virais, como o Remdesivir, criado contra o Ébola, que
está a ser testado em 600 doentes depois de ter mostrado ser capaz de
bloquear algumas das funções necessárias à replicação do coronavírus, ou
alguns dos que são usados para controlar o VIH, como o Kaletra, mas que
só parece funcionar em doentes com uma infecção recente.
Uma vez que uma das razões porque este vírus é tão perigoso é por
provocar uma reacção imunitária tão forte que o organismo acaba a atacar
o próprio organismo, algumas farmacêuticas também já estão a testar
anti-inflamatórios habitualmente usados contra a artrite reumatoide. Nos
Estados Unidos já há doentes a serem assim tratados.
Para controlar melhor a expansão da doença, a Fundação Bill and Melinda Gates está também a trabalhar num teste para a detecção da infecção auto-administrado, o que pouparia imenso o desgaste dos trabalhadores da saúde.
Por fim, há ainda linhas de investigação que usam anticorpos, como os
naturalmente gerados no corpo humano nas pessoas infetadas, e que são
produzidos a partir destes. Na China já há ensaios clínicos a decorrer,
nomeadamente um de grande escala em Wuhan, mas neste caso estima-se que
os resultados demorem quatro a cinco meses.
Ou seja, também nestas frentes há muita gente a trabalhar, mas ainda
não se vê luz ao fundo do túnel. O que nos obriga a regressar ao
Imperial College e aos seus cenários.
6. É possível retomar a actividade gradualmente?
As equipas da escola neste momento dirigida por um português, Francisco Veloso, continuam a produzir relatórios sobre o Covid-19, e se o relatório 12 é bastante aterrador nos cenários que traça para o mundo menos desenvolvido e mais pobre, o relatório anterior, o relatório 11,
analisa a forma como a China (e Hong Kong) foi retomando a actividade
depois de ter imposto o lockdown que lhe permitiu controlar o surto em
Wuhan. Ora nele conclui-se que é possível manter níveis intermédios de
actividade económica evitando mesmo assim um contágio generalizado. Ou
seja, há “estratégias de saída”.
O caso de maior sucesso no controle do contágio é porventura o da
Coreia do Sul, um país que tinha a experiência de lidar com outras
pandemias deste século e que implementou muito rapidamente medidas de
uma enorme eficácia. Num primeiro momento, no entanto, a doença pareceu
descontrolada muito por causa da sua propagação a partir de um único
foco, numa comunidade religiosa. Contudo medidas extremas permitiram o que hoje é visto quase como um milagre.
O que é que a Coreia do Sul fez então de diferente? Como lhe foi
possível controlar a doença mantendo os restaurantes e as escolas
abertas? Como controlou as pessoas sem polícias a cada esquina?
A resposta está na divulgação de informação e na transparência, o que
vai a par com a invasão de privacidade dos cidadãos, o que passa pela
utilização ubíqua das câmaras de videovigilância e de tudo o que se pode
saber através dos telemóveis que temos nos bolsos. Isto para além de
uma política de testes muito bem montada e massiva – foi lá que
começaram os testes sem sair do automóvel e foi lá que se montaram
sistemas em que o profissional de saúde entra literalmente dentro de uma “luva”
para recolher o teste – e de uma cultura de respeito pela comunidade
que não será fácil de reproduzir. Basta referir que um dos sistemas
passa por enviar SMS a informar a população de um bairro sobre se
apareceu alguém infectado na vizinhança.
Tudo apoiado por sistemas de big data e aplicações que permitiam
seguir não apenas os infectados, como todos os seus contactos, assim
isolando cada cadeia de transmissão. Para termos uma ideia comparativa,
aqui em Portugal quando formalmente se passou à chamada fase de
mitigação isso correspondeu a assumir formalmente que se tinha perdido o
controle das cadeias de transmissão da doença e que ela agora estava
espalhada na comunidade, no fundo “sabe-se lá onde”.
Ao mesmo tempo a Coreia do Sul adoptou medidas económicas radicais
para estimular a sua economia, medidas que não estarão ao alcance de
outros países, em especial de países que não têm moeda própria e forte e
um banco central autónomo e poderoso.
7. E se o lockdown for o menor dos males para a economia?
Mas a discussão entre os economistas que vivem em países não
orientais – e, portanto, sem a mesma cultura comunitária e de obediência
– é qual o ponto de equilíbrio entre as medidas mais restritivas, que
teoricamente protegem mais a saúde, e as medidas menos draconianas, que
em princípio favorecerão mais a economia.
Nesta frente é interessante citar o estudo de três economistas
Martin Eichenbaum, Mathias Trabandt e do português Sérgio Rebelo (há
sempre um português em todos os cantos do mundo) que sustenta a tese que
as medidas restritivas são, do ponto de vista económico, mais
eficientes do que permitir que a pandemia evolua até criar por si mesma a
“imunidade de grupo”. O que eles fizeram foi correr vários modelos em
que simularam o comportamento dos agentes económicos em diferentes
cenários, considerando – logicamente, diga-se de passagem – que num
cenário menos restritivo os consumidores não continuariam a comportar-se
como se não andasse um vírus por aí. Ou seja, num cenário menos
restritivo teríamos na mesma uma retracção económica e, ao mesmo tempo,
um custo humano muito mais pesado.
Por outras palavras, este estudo, ao associar as dimensões económicas
e humanas da pandemia, clarificou o valor das medidas mais robustas de
restrição e “distanciamento social”, assim como os riscos de não as
prosseguir. Algo a que Sérgio Rebelo não é indiferente, pois tem
presente que dos onze filhos que a sua bisavó teve, só três chegaram à
idade adulta: todos os outros sucumbiram no tsunami da “gripe espanhola”
de 1918.
Como notou Pedro Santa Clara, uma economia como a portuguesa não sobrevive muito tempo – semanas? meses? – ao estado de quase lockdown em que hoje se encontra e à perspectiva de que “até haver vacina esta situação vai durar meses”,
expressa pela ministra da Saúde este domingo. Sair “à sul-coreana”
parece ser difícil, quanto mais não seja porque nos faltam os testes
para realizar uma pequena parte do que seria necessário, entretanto já
se perderam as linhas de contágio e… os portugueses não são
sul-coreanos.
Mas será possível manter durante meses o estado de emergência? Será
aceitável continuar a aumentar as restrições colocadas à nossa
movimentação, como parece estar a ser equacionado (com o Governo a
assumir que já está a vigiar as ruas, e fazê-lo ostensivamente como sucedeu na Ponte 25 de Abril)
e como se exige nas redes sociais? E será sequer imaginável que
Portugal, um país com poucos menos habitantes do que Wuhan, mobilize 18.000 agentes só para localizar e seguir
todos os que estiveram em contacto com infectados? E quanto tempo
aguentam as pessoas confinadas aos seus apartamentos, com receio até da
crítica social se saírem para um passeio diário, sem começarem a ocorrer
outra pandemia, esta de problemas psiquiátricos?
8. E será que no fim ganha a China (e a Rússia)?
A única solução para já parece ser a de procurar manter as estruturas
da economia – as empresas, as famílias – o mais intocadas possível, de
forma a que, mal seja possível levantar as restrições, tudo volte à vida
como que por milagre. As políticas adoptadas têm variado de forma muito substancial de país para país,
com Portugal a ficar relativamente mal no retrato comparativo – a
dívida parece pesar muito na hora de tomar decisões, pelo que a
mobilização de recursos, em percentagem da riqueza nacional, tem ficado
muito aquém da dos nossos parceiros.
Isto numa altura em que, como notou
Nouriel Roubini, sem economia a funcionar, sem mercados, “só os
governos centrais têm folhas de balanço suficientemente robustas para
impedir que o sector privado colapse”. Sendo que mesmo em países onde
esses balanços são gigantescos por comparação com o nosso, como a
Alemanha, a previsão oficial
é que a economia sobreviverá a estas restrições, e só até certo ponto,
se elas forem levantadas até ao fim de Abril. Qualquer coisa que vá para
lá de Abril será muito severo e, sobretudo, terá consequências
incalculáveis.
Ora neste momento todas as curvas continuam a subir e ninguém sabe
realmente quando pode dizer: “Pronto, podem sair de casa”. Sendo que,
mesmo nas democracias, ganha força quem tem poder – e quem está no poder
– e torna-se aceitável o que antes era inaceitável. Tudo num mundo que
pode estar a mudar para sempre, e não para melhor, apesar de
provavelmente estarmos a aprender que podemos viver mais devagar. É que,
como nota o ensaísta norte-americano Robert D. Kaplan,
“por agora a luta é contra o vírus e o vírus será derrotado, voltaremos
a trabalhar e a viajar de avião. Só que quando isso acontecer a Rússia e
a China ter-se-ão reforçado comparativamente, e os Estados Unidos
debilitado”. Isto porque a China terá beneficiado do seu regime
ditatorial para impor quarentenas que nenhuma democracia conseguiria
suportar e das suas companhias estatais para absorver o choque
económico, enquanto a Rússia, por já estar submetida a sanções, acabou
por ser mais autossuficiente. Já os Estados Unidos, tal como a Europa,
como economias e sociedades abertas, sofreram mais duramente o impacto
da súbita paragem da economia.
Este novo desequilíbrio não abre as melhores para um mundo mais
livre, mas ninguém quer saber muito disso agora. A única preocupação é
mesmo quando é que isto vai acabar.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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