A diretora-geral de saúde avisa: “Não nos devemos beijar todo o dia e a
toda a hora”. Eu fique ceguinho se já me ocorreu beijar, uma vez que
fosse, a dra. Graça Freitas. Eis a sarcástica crônica semanal de Alberto
Gonçalves no Observador:
Pacientes zero
Face à discrepância entre o número de suspeitos (uma resma deles) e o
número de casos confirmados (nenhum), o primeiro-ministro já veio
serenar as massas e prometer entusiasmado que, “mais tarde ou mais
cedo”, Portugal terá o seu primeiro paciente com o coronavírus. Falar é
fácil. E, para o dr. Costa, mentir é facílimo. Certo é que o tempo passa
e até agora nada. No momento em que escrevo, cinco dezenas de países
exibem vítimas da doença e nós continuamos sem uma para contar a
história aos repórteres televisivos exaustos de entrevistar a mulher do
mecânico à porta de casa. Em matéria de coronavírus, estamos como na
economia: na cauda da Europa e nos fundilhos do mundo. O país é tão
pelintra que nem os micro-organismos querem nada connosco. O bicharoco é
igual aos terroristas islâmicos: se se apanhar por cá, no dia seguinte
atravessa a fronteira para causar baixas em lugares civilizados. Etc.
(Aceitam-se sugestões de novas graçolas alusivas à situação).
O costume dos suspeitos
A propósito, de que modo se determina que um indivíduo é suspeito de
sofrer do coronavírus? Dito de outra maneira, o que distingue os
suspeitos do coronavírus dos suspeitos da gripe comum? Dito ainda de uma
terceira forma, se amanhã for ao médico por causa de um resfriado,
quais as probabilidades de que me receitarem Ilvico em vez de me
submeterem a 35 horas de exames? O que decide, o tipo de espirro? As
férias recentes em Hubei, China? O palpite dos clínicos? A cara do
“utente”? Uma lista secreta de quotas para suspeitos a preencher por
cada hospital ou centro de saúde? E porque é que, mudando um bocadinho
de assunto, a quantidade de suspeitos sem doença cresce diariamente? O
INEM recebeu ordens para caçar transeuntes com pingo no nariz? Por fim,
quem nos garante que os suspeitos da gripe comum não padecem realmente
do coronavírus? E que os suspeitos não confirmados podem ficar aliviados
com a eficácia das análises? Convinha que as autoridades nos
esclarecessem, logo que alguém esclarecesse as autoridades.
Os nossos homens em Toyoake
Do governo às entidades da saúde, dos jornalistas aos moços que
cuidam dos “alertas CM”, o país está mortinho, salvo seja, por encontrar
o primeiro português infectado com o coronavírus. Por sorte, há dois.
Por azar, tiveram a desconsideração de o “contrair” (sic) para os lados
do Japão, que não fica à mão de redacções televisivas sitas em
Carnaxide, ou Almoxarife ou Alcabideche ou lá o que é. E além das
dificuldades logísticas, há as exigências simbólicas: o herói que
Portugal procura não pode ser um estrangeirado. É urgente que, no meio
de tantos suspeitos, se arranje depressa um Zé Carlos Santos, residente
num subúrbio e possuidor de uma família disposta a entreter os
repórteres. Não duvido de que estaremos entre os melhores do mundo em
matéria de pacientes. Com ou sem vírus, paciência é o que não nos falta.
Walking (não exactamente) dead
À semelhança do sr. Canas, que através de jantaradas com o “eng.”
Sócrates se prepara há 40 anos para ser juiz do Tribunal Constitucional,
é possível que a dra. Temido se tenha preparado durante 45 anos para
ser ministra da Saúde. Eu preparo-me há 50 para ser governado por
anedotas ambulantes. Mas ainda não estou pronto. Sobre as pessoas que
viajaram por zonas afectadas, a dra. Temido afirmou: “Quem provenha
destas regiões onde há transmissão do vírus deve ter cuidados especiais,
designadamente mantendo-se isolado (…)”. Ou seja, quem passeou por Roma
ou Seul deve, mal aterre por cá, fugir dos familiares à espera no
aeroporto e correr para locais ermos, por exemplo o topo de colinas,
shoppings falidos ou as instalações da Qimonda, onde ficará a vaguear,
género zombie, por tempo indeterminado. A alternativa seria testar os
passageiros que chegam da China e tal, mas tamanha irresponsabilidade
custaria um dinheirão, aliás necessário para “injectar” no Novo Banco e
em alguns velhos. Entretanto, fomos informados de que as declarações da
dra. Temido constituíram um lapso. Não era preciso: toda a gente sabe
que a própria existência da dra. Temido é um lapso.
Beijem-me, idiotas
É preciso notar que nem todas as autoridades produzem disparates
imediatamente desmentidos. Algumas dizem asneiras que ninguém desmente. A
directora-geral de saúde avisa: “Não nos devemos beijar todo o dia e a
toda a hora”. Eu fique ceguinho se já me ocorreu beijar, uma vez que
fosse, a dra. Graça Freitas.
A Oeste tudo de velho
Por falar em beijinhos, resta o prof. Marcelo. Na noite de 17 de
Junho de 2017, o prof. Marcelo chegou a Pedrógão Grande e declarou: “O
que se fez foi o máximo que se poderia ter feito”. No dia 25 de
Fevereiro de 2020, o prof. Marcelo afirmou: “Tudo está a ser feito para
lidar com o coronavírus”. É nestas alturas que invejo os que sabem
rezar. Se soubesse, rezaria para que o bicho mantenha o desprezo por um
lugarejo cujos líderes são criminalmente irresponsáveis, cujas
autoridades não têm autoridade nenhuma, cujos hospitais assistem à morte
de infelizes em salas de espera e cujo povo sente orgulho de semelhante
circo, e confia no circo para o proteger. Para a portugalidade é que
não há cura.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário