A cultura iliberal, caudilhista e tribal da América Latina é como os zumbis: nunca morre. Coluna de João Pereira Coutinho, via FSP:
Conheço bem o Thomas Mann romancista. Conhecia mal o Thomas Mann
ensaísta. E, agora que o li, talvez não haja autor mais importante, no
sentido político da palavra, para compreender e reagir à lenta
decadência democrática dos nossos tempos. O Brasil não é exceção.
O livro, na edição portuguesa, dá pelo nome de “Um Percurso Político”
(ed. Bertrand, 205 págs.). Reúne seis dos ensaios mais importantes de
Mann —da Primeira Guerra Mundial ao fim da Segunda.
Ou, resumindo o espírito da odisseia, da loucura nacionalista do
escritor até o mea culpa de um verdadeiro patriota —alguém que é capaz
de amar o seu país sem esconder as suas monstruosidades.
Os textos da Primeira Guerra são os mais difíceis de engolir. Que
Mann defendesse a Alemanha durante o conflito, nada de original.
Mas a defesa explícita de que os alemães, povo de “cultura” mas não
de “civilização” (Nietzsche “dixit”), jamais seriam capazes de abraçar a
democracia e o parlamentarismo, preferindo sempre formas despóticas de
governo, é de um fatalismo avassalador —e confrangedor.
A derrota chega em 1918, ao contrário do que Mann previra com
delirante confiança. A República de Weimar também. E os extremismos
comunista e nazista começam a rondar a jovem democracia do pós-guerra.
Mann opõe-se a ambos e defende a república democrática. Mais ainda:
defende a república como conservador que é, ou seja, como alguém que
aprendeu com a experiência do passado e que olha agora para os seus
próprios entusiasmos nacionalistas e autoritários com tristeza e náusea.
Uma vez mais, Thomas Mann sai derrotado. A república perde. Hitler
chega ao poder em 1933. Seis anos depois, nas vésperas de uma nova
guerra e já no exílio americano, Thomas Mann olha para o Führer e
publica “Irmão Hitler”. É título enganador: o “irmão” não é tratamento
afetivo; refere-se apenas a alguém que, embora seja parte da mesma
família, a atraiçoa profundamente.
A cultura alemã, nas palavras de Mann, valoriza a dignidade do saber e
do espírito; o nacional-socialismo, com os seus transes histéricos e
apocalípticos, é uma deformação desse espírito.
Com a derrota do Terceiro Reich e a longa lista de crimes cometidos
pelo regime, Thomas Mann abandona qualquer ilusão de que é possível
separar a boa Alemanha da má Alemanha.
Só existe uma: a Alemanha que nos deu a grande música, a grande
poesia, a grande metafísica é exatamente a mesma que, desde Lutero,
desde a Reforma, sempre cultivou uma forma perigosa de antipolítica.
A arte da política é a arte do compromisso, da imperfeição, do
possível. Para o espírito germânico, o compromisso é sempre uma
revelação de fraqueza.
Entre a fraqueza e a barbárie, a famosa “interioridade” alemã opta
pela barbárie como forma de não ceder às tentações fáusticas do
compromisso.
O patriota de 1914 continua a ser um patriota em 1945. Mas é agora um
patriota lúcido, realista, desencantado, capaz de olhar para as coisas
como elas são.
Os ensaios de Thomas Mann merecem leitura urgente. Sobretudo por uma
parte da direita brasileira que parece incapaz de olhar para as coisas
como elas são.
As ameaças recentes do presidente Jair Bolsonaro contra este jornal
não são apenas mera retórica circense. Elas participam de um espírito
autoritário que também faz parte da cultura iliberal, caudilhista e
tribal da América Latina.
É uma cultura que, tal como os zumbis, nunca morre; ela emerge sempre
da escuridão do tempo para devorar a mera possibilidade de uma
sociedade livre, pluralista e civilizada.
Por incrível que pareça a muitos conservadores brasileiros, é
possível amar o Brasil, a sua cultura, a sua língua, o seu povo, sem
amar a sua face mais violenta e grotesca.
De igual forma, é perfeitamente legítimo recusar o revanchismo da esquerda sem abraçar o revanchismo gêmeo da direita.
Durante a República de Weimar, Thomas Mann enfrentou esse dilema:
para combater os revolucionários bolcheviques era inevitável aplaudir os
revolucionários das cervejarias de Munique?
Ou a experiência histórica, o respeito pela racionalidade, pela ética
e até pela estética impunham a recusa dos extremos —e a defesa da
legalidade e da democracia?
Thomas Mann perdeu todas as batalhas políticas momentâneas. Mas a
vitória final foi dele. Eis a última lição dos seus ensaios para o
Brasil de 2019: a história sempre foi mais sábia do que os fanáticos que
agem em seu nome.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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