Alguma mulher negra que queira praticar o surfe é impedida por ser negra
ou mulher? Em caso afirmativo, impedida por quem?. Flavio Gordon,
colunista da Gazeta do Povo:
Fico sempre impressionado ao constatar o quão rápida e profundamente a
lógica da balcanização racial fincou raízes no Brasil. Num processo
artificialmente imposto por uma classe falante pernóstica e
culturalmente desenraizada, seus pressupostos contrariam toda a nossa
formação histórica e antropológica, fruto de cinco séculos de
colonização portuguesa. Pois, com sua ênfase no ideal de assimilação e
miscigenação (o que não exclui a violência e o racismo, bem entendido), o
estilo colonial português contrasta fortemente com o paradigma
segregacionista e multiculturalista em vigor nos países de colonização
britânica, que teve no apartheid sul-africano a sua versão mais radical,
e que, nas últimas duas ou três décadas, a intelligentsia tupiniquim
achou por bem adotar como modelo alternativo para as nossas relações
raciais. Sob o pretexto de combater o racismo, reifica-se
perturbadoramente o conceito de raça e, pior ainda, reintroduz-se no
debate público um vínculo entre raça e cultura que há muito se imaginava
sepultado.
A guerra de propaganda movida por essa intelligentsia não cessa de
retratar o Brasil como uma sociedade racialmente dividida entre “negros”
e “brancos”, duas categorias que, adaptadas do paradigma marxista das
classes sociais, viveriam em oposição vital e irreconciliável. Para
espalhar essa narrativa divisionista e odiosa, nossos bem-pensantes
sempre pressupõem o racismo ali onde ele deveria ser demonstrado.
Basta abrir os jornais, ligar a televisão ou o rádio para topar com
exemplos variados dessa abordagem. No último dia 28 de novembro, por
exemplo, o jornal O Globo publicou uma matéria com o seguinte título:
“No Brasil, apenas 3 surfistas profissionais são negras. Como combater o
racismo na elite do esporte? Elas respondem”.
Diante de uma chamada tão acusatória e alarmista, fui, é claro,
conferir o corpo da matéria em busca de argumentos que pudessem haver
permitido à autora estabelecer uma relação de causa e efeito entre um
dado objetivamente mensurável – o baixo número de atletas negras no
surfe profissional brasileiro – e o racismo. Porque, afinal, apenas
constatar aquele fato estatístico não é o mesmo que descobrir a sua
causa. Não se pode, por exemplo, extrair do fato de haver poucas
mulheres encanadoras, eletricistas ou desentupidoras de fossa a
conclusão de que isso se deve ao machismo. O mais provável é que seja
resultado do pouco interesse das mulheres em geral por essas profissões.
O mesmo vale para o racismo e o surfe. Para dizer que, no Brasil, o
racismo é a causa do baixo número de surfistas negras, seria preciso
demonstrar, primeiro, a existência de um grande número de mulheres
negras interessadas pelo surfe; e, segundo, que essas mulheres são
impedidas – ou, no mínimo, desestimuladas – de praticar o esporte por
causa da discriminação racial, ainda que velada. É esse tipo de
demonstração que deveria constar em uma matéria que afirma tão
categoricamente a existência de racismo na elite do surfe profissional
brasileiro. Mas o leitor procurará em vão por ela. O que vai encontrar,
em vez disso, são lugares comuns da retórica progressista e reafirmações
da premissa inicial à guisa de conclusão.
“A popularização do surfe aconteceu, de fato, na Califórnia a partir
de 1900. Com isso, acredita-se que um padrão foi criado, e os surfistas
negros foram esquecidos no decorrer do tempo”, escreve a redatora de
maneira propositadamente vaga e sentimental, sem se dar ao trabalho de
explicar: 1. Quem é que acredita que “um padrão foi criado”? 2. Que
padrão é esse? 3. O que significa exatamente dizer que “os surfistas
negros foram esquecidos”?
A matéria prossegue: “Além disso, enquanto durou a segregação racial
nos EUA, os negros eram proibidos de surfar em praias limpas e com ondas
boas”. Eis aí, finalmente, uma demonstração objetiva da relação entre
racismo e surfe. Seu único problema é concernir aos EUA da primeira
metade do século 20, não ao Brasil, e muito menos ao Brasil
contemporâneo. Logo, esquivando-se da tarefa de citar exemplos
minimamente similares de discriminação racial no nosso país (negros
proibidos de frequentar determinadas praias, por exemplo), a autora
deixa solta no texto a referência à segregação racial americana, pois,
antes que informar o leitor sobre algum problema real, seu objetivo é
causar nele certa impressão subliminar, de modo a emplacar uma narrativa
politicamente correta previamente definida.
Em certa altura, o texto faz referência a um evento criado com o
objetivo de discutir o racismo e o machismo no surfe, o 1.º Encontro
Nacional de Surfistas Negras e Nordestinas, realizado na praia da Barra
da Tijuca, no Rio de Janeiro. A idealizadora foi a jornalista e
ex-surfista profissional Érica Prado, que, na reportagem, aparece
questionando a ausência de representatividade das mulheres negras no
surfe profissional, tendo em vista que, segundo o IBGE, 55,8% da
população se autodeclara negra e cerca de 26% são mulheres. Se os
números são altos, onde estão esses atletas na elite do surfe, sobretudo
as mulheres negras?, indaga Érica, em pergunta retórica que carrega a
resposta embutida: essas mulheres são vítimas de racismo. “Não tem
nenhuma negra na elite mundial. O universo do surfe é um reflexo da
nossa sociedade racista e não existe equidade quando se trata de
surfistas negras e nordestinas. Criou-se um modelo californiano de
surfista ideal e mulheres fora desse padrão imposto pelo sistema são
invisibilizadas”.
Mais uma vez, ficamos sem qualquer informação sobre como opera esse
“sistema” que impõe um “modelo californiano de surfista ideal”. Por
exemplo, de que forma as mulheres fora desse padrão seriam
“invisibilizadas”? E qual o significado preciso desse maneirismo em
sociologuês, a propósito? Alguma mulher negra que queira praticar o
surfe é impedida por ser negra ou mulher? Em caso afirmativo, impedida
por quem? Há alguém que, em determinado momento, chegue para a mulher
negra e diga: “Não, você não. Daqui você não passa”? Se a discriminação
racial ou sexual é tipificada como crime no país, há alguma denúncia
formal contra quem, em hipótese, a está cometendo? Se não, por que? Se,
por outra, a tal “invisibilização” das surfistas negras é fruto de
racismo velado, quais são as maneiras pelas quais esse racismo se impõe e
se efetiva?
Eis apenas algumas das questões que uma matéria jornalística
autêntica sobre a eventual ocorrência de racismo no surfe nacional
deveria se preocupar em investigar. Ocorre que não estamos falando de
jornalismo, mas de ativismo. Portanto, em lugar de descrever a
ocorrência do racismo no esporte, trata-se aí de inventá-lo ex nihilo,
de modo a jogar mais água no moinho do discurso neo-segregacionista cada
vez mais hegemônico e inquestionável entre os nossos bem pensantes e
falantes.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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