Puritanismo progressista sobre a moralidade da arte é uma cópia do velho
puritanismo reacionário. Coluna de João Pereira Coutinho, via FSP:
Sabemos que o pintor Paul Gauguin (1848-1903) dormiu com meninas de
13 anos quando partiu para a Polinésia. Sabemos que Paul Gauguin é um
nome incontornável da história da arte moderna. Pergunta: devemos expor
os seus quadros e esquecer a biografia?
Ou a biografia mancha a sua arte e, no limite, obriga à remoção dos seus quadros?
A National Gallery de Londres, que dedica uma grande retrospectiva
aos retratos de Gauguin até 26 de janeiro, decidiu enfrentar essas
questões com um debate público. Uma das vozes que participou no debate
foi um filósofo que admiro, Daniel Callcut. A sua posição pode ser lida
na revista Prospect.
Sim, Callcut começa por fazer uma vénia a todos aqueles que têm uma
posição essencialmente esteticista sobre o assunto: o fato de Gauguin
não ser uma pessoa recomendável não invalida a qualidade do seu
trabalho. Se assim fosse, seria preciso reescrever ou até expurgar a
história da arte de alguns dos seus nomes fundamentais —Caravaggio,
Cellini, Schiele, Picasso etc.
Porém, Callcut levanta duas questões que merecem resposta.
A primeira passa por saber se os grandes museus, na celebração da
arte de alguém, não acabam igualmente por celebrar o homem que a
produziu com todo o seu rol de vícios e até de crimes. Uma coisa é
afirmar que a arte não é manchada pela biografia. Outra é defender que a
arte higieniza a biografia.
A segunda questão é ainda mais complexa. Porque Gauguin não se
limitou a abusar de meninas de 13 anos. Elas são o objeto de muitos dos
seus quadros. Quando entramos no museu para ver a arte de Gauguin, não
estamos a olhar para simples modelos que o artista retratou. Estamos
também a contemplar as vítimas de um crime. Será que isso não tem
importância moral?
As perguntas são boas. Mas, com todo o respeito por Daniel Callcut, elas não são originais.
Começo pela primeira. Homens deploráveis podem ser bons artistas?
Fato. Mas aquilo que me interessa em Gauguin não é a sua biografia
comum, muito menos o seu registro criminal.
É a sua biografia artística —o que ele aprendeu com os
impressionistas e, sobretudo, com Camille Pissarro; o que ele procurou
artisticamente com as suas buscas “primitivas” no Taiti; e o que ele
encontrou no processo para influenciar nomes como Picasso ou Matisse,
sem os quais a pintura moderna não seria a mesma.
O meu interesse pelo homem começa e acaba no artista. Se o seu grau
de virtude fosse relevante para uma avaliação estética, então seria
necessário suspender qualquer julgamento sobre qualquer nome da história
da arte até termos a certeza absoluta de que a figura em questão nunca
fez mal a uma mosca.
O mesmo vale para os objetos retratados. Admito que muitas mulheres,
homens e crianças foram explorados por artistas ambiciosos (e nem sempre
talentosos). Mas como avaliar, em 2019, o grau de sofrimento real de
todas as figuras da história da arte —da Vénus de Hohle Fels até as
amantes de Lucian Freud?
Se a moralidade é mais importante do que a estética, a única forma
preventiva de respeitar as supostas vítimas passaria por remover do
espaço público todas as obras de arte duvidosas.
Depois, através de um exame de pureza, as obras seriam liberadas. Como acontece nos regimes ditatoriais com censura oficial.
O puritanismo progressista sobre a moralidade da arte e dos artistas é
uma cópia do velho puritanismo reacionário, e até totalitário, que
subjugava a autonomia da arte com critérios extra-estéticos.
Esse passado foi negro. Será que desejamos um futuro igual?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário