Não é um jogo para fracos e o primeiro-ministro sabe que ninguém quer
ver parlamentares sendo arrastados. Problema: a oposição também sabe.
Coluna de Vilma Gryzinski:
Se a eleição fosse hoje, o Partido Conservador de Boris Johnson
ganharia a maioria dos votos – 31%. Ainda é uma miséria, mas já são três
pontos a mais do que no começo de agosto.
Ele também aparece como a melhor opção (45%) para primeiro-ministro
(o trabalhista Jeremy Corbyn vem em terceiro lugar, com 17%).
Problema número 1: obviamente é o “se”.
Não vai ter eleições agora, o que não significa que o
primeiro-ministro não possa convocá-las logo depois de 31 de outubro,
quando a Grã-Bretanha já terá feito o Brexit.
Não existe um político, dentro ou fora das ilhas britânicas, que não
tenha marcado a fogo na cabeça o que aconteceu com os dois últimos
primeiros-ministros, ambos conservadores.
David Cameron convocou o plebiscito sobre o Brexit certo de que a opção seria derrotada e ele sairia fortalecido. Danou-se.
Theresa May convocou eleições gerais num momento em que parecia por cima.
Por não ter um mandato direto – tendo sido votada pelos membros de
carteirinha do Partido Conservador, dentro das regras do sistema
parlamentarista, o mesmo caso de Boris –, achou que ganharia força para
tocar o Brexit.
Igualmente, danou-se.
Precisou de uma aliança precária com um pequeno partido da Irlanda do Norte para se manter no governo.
É esta maioria por um mísero voto, somada à estratégia da ousadia pela qual optou, que deixa Boris dançando na beira do vulcão.
Sem contar as divisões internas no próprio Partido Conservador, com
alas que são puramente contra o Brexit e outras que não aceitam a saída
sem acordo.
São dissidentes internos que podem se aliar à oposição, furiosos com a
hipótese de que Boris Johnson lhes tenha passado a perna ao suspender
as sessões parlamentares até o meio de outubro.
Com autorização da rainha Elizabeth, claro.
Num sistema democrático, o monarca não tem opção a não ser endossar o
que o chefe do governo propõe, exceto em circunstâncias tão
excepcionais que nunca aconteceram e, se acontecessem, dificilmente
seriam acatadas pela rainha, venerada pela impecável imparcialidade
mantida há quase 70 anos.
ATORES IRADOS
Mesmo sem demandar uma intervenção real, ninguém pode negar que a excepcionalidade das circunstâncias atuais.
Boris Johnson suspendeu o Parlamento numa espécie de golpe preventivo
– dentro das regras do jogo democrático –, sabendo perfeitamente as
reações que provocaria.
Talvez não tenha ficado exatamente impressionado com os ataques de
fúria de celebridades que fingem fazer cinema ou teatro, mas são na
verdade sumidades do direito constitucional (isso é uma brincadeira, ao
estilo do que a Spectator fez com as sandices desinformadas de famosos
sobre os incêndios na Amazônia).
“Você não vai destruir a liberdade pela qual meu avô lutou em duas
guerras mundiais”, tuitou, talvez com um certo exagero, o ator Hugh
Grant. “Não vai ferrar o futuro dos meus filhos.”
A palavra que usou não foi exatamente “ferrar”. De hábito, Grant
costuma administrar questões como filhos sobrepostos – com a namorada um
e a número dois – ou, no passado mais distante, incidentes envolvendo
prostituição, policiais e outros aborrecimentos.
Stephen Fry classificou a suspensão de “coup d’état doentio, cínico, brutal e horrivelmente perigoso”.
Pois é, o ator acha que foi golpe. Em francês e tudo.
Mais do que as pontificações de celebridades em redes sociais e a
habituais manifestações de rua, as cabeças esquentadas podem produzir
cenas mais picantes.
O Parlamento estava em recesso – férias de verão – quando Boris fez sua jogada e hoje volta ao jogo.
Alguém duvida que os mais exaltados vão se recusar a aceitar a
suspensão? Que estão loucos para criar cenas em que aparecem, heroica e
literalmente, grudados nos bancos forrados de couro verde?
O maior aliado nesse jogo de cena é o presidente da Câmara dos Comuns, John Bercow.
Ao contrário do que acontece no Brasil, o ocupante do cargo tem que
ser totalmente apartidário e se limitar ao controle das votações.
Não com Bercow, um ex-conservador que se transformou num dos maiores
especialistas em manipular as regras internas para dificultar o Brexit,
conseguir um novo referendo ou, na falta disso, impossibilitar a saída
sem acordo.
Uma dessas regras permite a convocação de uma sessão de emergência a pedido de qualquer parlamentar.
BODE NA SALA
Mas será que Boris Johnson está realmente empenhado em sair na marra?
Será que ao defender esta alternativa como a única possível, na falta
de qualquer concessão da União Europeia, não está blefando?
Colocando o “goat in the drawing room”, sob a forma do Brexit puro e
duro, contando que na última hora vai haver um entendimento pelo bem de
todos?
Existe também a possibilidade de que a saída sem acordo realmente
aconteça no Dia das Bruxas, como Boris tem que fazer por questão de
sobrevivência política.
No dia seguinte, ele tira o bode da sala, propõe um acordo comercial especial com a União Europeia e convoca eleições.
O jogo está ficando cada vez mais emocionante.
Depois que o primeiro-ministro pediu a suspensão, é claro que
choveram evocações de um dos períodos mais conturbados da história
inglesa.
Em 1628, o rei Charles I suspendeu o Parlamento, desencadeando a sucessão de infortúnios que levaram à Guerra Civil.
Vinte anos depois, o rei era decapitado depois de ser julgado pelo
Parlamento e Oliver Cromwell se consolidava como o comandante supremo.
Ao contrário do que aconteceu depois na França, a revolução não emplacou.
O período de “ditadura parlamentar” durou uma década e a monarquia
foi restaurada. O corpo de Cromwell, morto de causa natural, foi
desenterrado e postumamente decapitado. Mas nunca mais nenhum rei
desafiou o Parlamento daquela maneira.
Ao contrário, o poder do Parlamento só continuou aumentando e o dos monarcas, diminuindo.
Como a história é constantemente reescrita, os papéis e a envergadura
histórica de Charles Stuart, um rei autodestrutivo, e de Oliver
Cromwell, um revolucionário puritano, são discutidos e rediscutidos até
hoje.
Em que lugar Boris Johnson se encaixaria? Será que confirmará os
prognósticos de que não passa de um bobo da corte? Ou encontrará uma
grandeza histórica da qual ninguém desconfiava?
E ainda precisamos aguardar para ver o que Hugh Grant acha de tudo isso.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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