Esta nova exigência de unanimidade em torno de Greta Thunberg representa
uma exigência de regresso à faceta mais negra do pensamento
adolescente, a outra face, a lunar, escreve o professor Paulo Tunhas no Observador:
Gosto muito de ver aqueles grupos de adolescentes que, antes ou
depois dos concertos dos seus ídolos nesses festivais rock que hoje em
dia há em todo o lado, são entrevistadas pela televisão e cantam as
músicas favoritas deles. Naquelas idades, a experiência da música é
muito a experiência da repetição e, sobretudo, a experiência de uma
comunidade de gosto que é quase uma exigência de unanimidade, que, de
uma maneira geral, governa as amizades nessa altura. E aquele entusiasmo
que se vê naquelas caras e naquelas vozes diz precisamente isso nos
seus momentos felizes.
Com a idade, essa exigência de unanimidade vai-se, graças a Deus,
perdendo, embora subsista sempre em nós, em matéria de gosto, uma
reivindicação tácita de universalidade, que aprendemos, pelo menos na
aparência, a dominar. Noutros domínios, como o político, a exigência de
unanimidade é mais superficial, menos originária, e mais facilmente
controlável. E, quando não o é, o feroz desejo de um acordo integral
conduz a resultados que não são nunca bons, para falar delicadamente.
O meu desconhecimento da música pop contemporânea roça
desgraçadamente o absoluto, embora de vez em quando faça um esforço
ridículo para ganhar alguma ciência no capítulo. De qualquer maneira,
isso não interessa. Li no outro dia, numa história da música soul, o
excerto de uma entrevista de uma cantora gospel (gosto muito de música
gospel), Cissy Houston (a mãe de Whitney Houston), onde ela dizia que
“quando se fala sobre uma coisa viva – e eu acredito que a música é uma
coisa viva, que respira – temos de compreender que ela avançará e
mudar-se-á para sobreviver”. A música pop de hoje em dia, sobre a qual
nada sei, passado há muito o transcendente saber dos meus treze anos, é
certamente o resultado dessas metamorfoses necessárias à sua
sobrevivência. As formas desenvolvem-se, sem que seja por qualquer
necessidade própria determinável, mas a partir de invenções de
profundidade variável, umas a partir das outras. O importante é que dêem
prazer.
Mas voltemos ao princípio, à exigência de unanimidade. Ela é natural
na idade certa e no lugar certo, que é o das miúdas de que falei no
princípio. E, nesses casos, tem a graça própria ao natural. Transposta
para outros contextos, há nela qualquer coisa de inquietante e de
ameaçador. Ora, vivemos em tempos mediáticos de uma exigência de
unanimidade como não me lembro de alguma vez ter vivido, isto é, tempos
de regressão sistemática e generalizada. Na maior parte das vezes, uma
exigência de unanimidade negativa, definida a partir da obrigação de
detestar – e detestar integralmente, sob a forma da radical abominação –
pessoas tão diferentes como Trump, Bolsonaro ou Boris Johnson. Qualquer
acordo, por mais pontual que seja, com algo que tenham dito ou escrito,
é anátema e faz com que passemos a “trumpistas”, etc. Não é bom viver
assim.
Nos últimos tempos surgiu, no entanto, na figura de Greta Thunberg,
um novo objecto de unanimidade, desta vez positiva. É muito curioso. Não
por causa da questão das “alterações climáticas” em si – uma questão
importante e interessante, entre outras coisas, porque toda a
controvérsia é “impura”, cruzando elementos científicos e políticos numa
proporção extrema –, nem sequer porque há um óbvio drama humano ali, um
drama que só muito dificilmente terá um final feliz. É curioso porque
esta nova exigência de unanimidade em torno de Greta Thunberg representa
uma exigência de regresso à faceta mais negra do pensamento
adolescente, a outra face, a lunar, da moeda do comportamento das miúdas
que cantam na televisão as canções dos seus heróis musicais. E porque
há um coro de adultos (excepção feita a Trump, diga-se a verdade), a
começar por António Guterres, que fazem a triste figura da mais
declarada inferioridade e mostram o mais acabado temor reverencial.
O discurso de Greta Thunberg na “Cimeira do Clima” foi um momento de
perfeito horror. Primeiro, porque, patentemente, a “emoção” foi
friamente encenada do princípio ao fim, algo que saltava aos olhos do
mais distraído dos humanos. Não havia um átomo de veracidade naquela
intervenção, se exceptuarmos, concedo, um ódio cego e monomaníaco.
Confesso que, nunca tendo ouvido um discurso dela, a coisa me
surpreendeu: a terrível simulação surpreendeu-me. Depois, porque todas
as palavras transportavam ameaças de vingança divina. O natural
dogmatismo da adolescência assumia ali as proporções do fanatismo e do
“tudo ou nada” mais extremo. “Como se atrevem?”, diz o doce anjo da
vingança, que acusa os seus passivos auditores de lhe terem “roubado a
infância” com as suas “palavras vazias”. Eles que não contem jamais com o
seu perdão.
Ao ouvir aquele discurso, a luz fez-se no meu espírito. O fanatismo –
todos os fanatismos – não vive de nenhum sentimento absoluto da verdade
do que se crê ou diz, de onde qualquer cepticismo se encontra arredado:
vive do puro desejo de impor a sua crença aos outros. Por outras
palavras, um fanático não precisa de se encontrar capturado por uma
qualquer iluminação fantástica. Define-se sim pela necessidade de fazer
crer que foi tocado por essa iluminação, como meio para a impor aos
outros. É o desejo de a impor, e não qualquer efectiva expressão do seu
íntimo mais profundo, que o move. Para mim, foi essa a inesperada lição
de Greta Thunberg.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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