As propostas de David Runciman podem levar ao triunfo das 'ditaduras da maioria', escreve João Pereira Coutinho na FSP:
O que fazer quando o
povo vota como não deve? Imagino que o leitor, nos seus momentos de
frustração, já fez essa pergunta. Chega o dia da eleição. Os resultados
são conhecidos. E o leitor, pessoa com estudos, pergunta: “Como é
possível tanta imbecilidade?”
Em fúria, o leitor
civilizado pensa em mudar de país, na impossibilidade de mudar de povo.
Ou, seguindo uma moda cada vez mais crescente, procura alternativas à
democracia —uma epistocracia, talvez, em que só os mais sábios podem
governar.
Em situações normais,
a febre desce e, alguns dias depois, a vida segue como sempre. E o
leitor conclui, melancolicamente, que a democracia pode ser um mal
sistema, mas é melhor que todos os outros (Churchill “dixit”). Ou não é?
David Runciman, o
conhecido politólogo britânico e autor de “Como a Democracia Chega ao
Fim” (Ed. Todavia, 272 págs., R$ 64,90) acha que não é. E escreve na
“Foreign Policy” um artigo que merece pasmo (primeiro) e resposta
(depois).
O assunto é o
aquecimento global. Até 2030, dizem os especialistas, é preciso mudar
radicalmente de vida. Caso contrário, não haverá futuro para ninguém.
Não vou discutir os
méritos ou deméritos do assunto. Muito menos fundamentar as minhas
ideias sobre o aquecimento global com as proclamações de uma garota de
16 anos, Greta Thunberg, que David Runciman cita como fonte de toda a
sapiência e autoridade.
Fico pelo argumento
central de Runciman: os mais jovens preocupam-se com o aquecimento
global; os mais velhos não se preocupam tanto. No Reino Unido, quase
metade dos eleitores entre os 18 e os 24 anos sentem que o aquecimento
global é um problema; entre os maiores de 65 anos, só 20% têm a mesma
opinião.
Nos Estados Unidos, a
mesma coisa: só 10% dos eleitores entre os 18 e os 29 anos não são
sensíveis aos apelos do Painel Intergovernamental sobre Mudanças
Climáticas. Para os maiores de 65 anos, a insensibilidade cresce para os
40%.
A pergunta é
inevitável: como são os mais velhos que votam e decidem eleições, parece
que a democracia é o maior inimigo do planeta. Para resolver o assunto,
Runciman não escolha as opções óbvias: acabar com a democracia —ou,
então, acabar com o direito de voto dos mais velhos.
Também não defende
que os mais novos possam votar cada vez mais cedo: isso não é suficiente
para desequilibrar a balança demográfica. David Runciman sugere dois
caminhos.
O primeiro, com a
devida vênia ao filósofo alemão Jürgen Habermas, é promover formas de
“democracia deliberativa” em que é a sociedade civil a discutir e a
deliberar sobre certos assuntos, cabendo aos políticos a aplicação das
medidas aprovadas.
Por outro lado,
Runciman aplaude formas mais radicais de democracia direta. Por exemplo,
atos de desobediência civil, tipo Extinction Rebellion, e que obriguem
os políticos a parar para pensar (de preferência, com um milkshake no
rosto).
Infelizmente, as
propostas de Runciman apontam para o mesmo caminho: a erosão da
democracia representativa e o triunfo das “ditaduras da maioria”. Na
peculiar proposta de Runciman, o aquecimento global merece esse flerte
com formas mais radicais de participação democrática. Mas o que teria o
sábio filósofo para nos dizer se as coisas corressem barbaramente mal?
O que teria ele para
dizer se, nessas formas radicais de democracia, as maiorias decidissem
abandonar o combate às alterações climáticas pela promoção de formas
mais poluentes de desenvolvimento econômico?
Sem falar de outros
assuntos, que poderiam ser igualmente deliberados. O que fazer se a
sociedade civil decidisse discriminar minorias? Se apoiasse a pena de
morte para delitos graves (ou menos graves)? Se exigisse o fim da
liberdade de imprensa e, mais vastamente, o fim da liberdade de
expressão?
A democracia
representativa existe por um motivo: para temperar as insondáveis
paixões das massas com o julgamento mais moderado dos representantes.
Runciman pode
desesperar com a lentidão do processo. Mas é essa lentidão, a que se
junta o providencial sistema de freios e contrapesos, que impede o
dilúvio populista. O exato dilúvio que só parece assustar David Runciman
quando o tema é Donald Trump.
Se o aquecimento
global é um fenômeno apocalíptico, é pela informação científica e pela
persuasão de eleitores e eleitos que uma sociedade civilizada funciona.
Não é por formas histéricas, anárquicas ou até terroristas de
intervenção política.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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