“Alguém faz piada com câncer?” Faz. E é bom que faça. É necessário que faça. Artigo de Paulo Polzonoff, via Gazeta do Povo:
Leio que celebridades saíram em defesa do ator Fábio Assunção, tema
de piadas e memes por conta de seus muitos flagrantes num estado,
digamos, bem distante da sobriedade. “Piada tem limite”, argumenta a
intelectual Carolina Dieckman. Klebber Toledo (que, descubro pela
Wikipedia, é ator) vai além, bate na mesa, se levanta bem devagar, lança
um olhar compungido para a câmera, close in, sobe a música (violinos) e
pergunta: “Alguém faz piada com câncer?”
Faz. E é bom que faça. É necessário que faça.
A falsa polêmica, felizmente restrita ao Grande Simulacro de Vida©
que são as redes sociais, vem a calhar, porque recentemente a Netflix
lançou uma série de documentários imperdível para quem gosta de humor (e
para os loucos como eu que gostam de pensar o humor). Em ‘Larry
Charles' Dangerous World of Comedy’, o diretor de ‘Borat’ viaja a
lugares agradáveis como Iraque, Libéria e Somália para descobrir do que
as pessoas que vivem em meio à guerra, fome, doença e pobreza riem.
E a resposta só surpreende celebridades brasileiras criadas à base do
mamão orgânico com açúcar demerara: o ser humano ri de tudo.
Absolutamente tudo. No Iraque, comediantes arriscam a vida (arriscam
mesmo, de verdade, não estou falando de perder uma verbinha via Rouanet
aqui ou um papel no folhetim das 18h acolá) para rir das decapitações do
ISIS. Na Libéria, comediantes tiram sarro de quem pegou Ebola. Na
Somália, nada mais engraçado do que uma pessoa que perdeu as pernas na
guerra e que hoje em dia passa fome.
Rir é uma necessidade não só física e emocional, como também
espiritual. De um lado, o riso torna a vida mais leve e permite que
tenhamos diante das adversidades uma postura mais estoica; de outro, o
riso nos aproxima do Divino ao estabelecer uma relação de inequívoca
empatia entre o ouvinte/espectador e o tema da piada, seja ele um
aidético, um soldado desfigurado pela guerra ou um ex-warlord que comia o
coração dos inimigos (literalmente, não figurativamente).
A série documental de Larry Charles (não confundir com Larry David,
outro grande comediante que se permite rir de tudo, inclusive e
sobretudo de seu próprio narcisismo) dialoga com o livro ‘Hitler
Laughing: Comedy in the Third Reich’ [Hitler rindo: comédia no Terceiro
Reich], de William Grange. O livro fala da tentativa dos nazistas de
eliminarem tudo o que era “não-alemão”, o que, obviamente, incluía a
comédia (afinal, você já viu um alemão rindo? Nem eu) e da resistência
por meio do riso, nem que isso custasse ao comediante a vida ou uma
temporada no “spa” de Auschwitz.
Portanto, Carolzinha, não, piada não tem limite. Nunca teve nem nunca
vai ter. Qualquer tentativa de se impor um limite à comédia, aliás,
esbarra na própria comicidade da proposta, geralmente feita por
tiranetes cheios de boas intenções.
Voltando à Grande Dúvida Klebbertolediana sobre a existência ou não
das piadas com câncer, vale a pena mencionar só um nome: Tig Notaro,
comediante de terceiro ou quarto escalão que ganhou fama depois de
montar um espetáculo inteiro falando de seu câncer de mama (ao qual ela
vem sobrevivendo) e de suas divertidas consequências: da dupla
mastectomia ao inevitável confronto intelectual com a morte, passando
pela “compaixão ofensiva”, aquela coisa de ter sua doença cotidianamente
usada como plataforma para uma demonstração da virtude alheia.
Ah, mas piadas ofendem, magoam, dirá Carol & Klebber (com dois
bês!). Palavras ferem, ui, ui, ui. O mundo das celebridades brasileiras,
dessas pessoas que precisam de crachá de artista, infelizmente não
percebeu que um mundo sem conflitos não existe e que, se existisse, a
própria atividade artística seria desnecessária. A arte (ainda que
chamar o que esse povo faz de arte seja um exercício de generosidade
lexical) só existe porque a vida é deliciosamente conflituosa, porque há
choro e riso, alívio e indignação, injustiça e reparação.
No grande circo que é a dramaturgia brasileira, coube a Fábio
Assunção, antes galã, o papel de palhaço das sextas-feiras, com o rosto
devidamente maquiado de pó (de arroz, de arroz!). Há quem ria – ainda
bem. Se Fábio & Amigos são incapazes de se olhar no espelho e soltar
uma bela gargalhada, bom, isso é muito mais pernicioso, reprovável e
digno de pena e tratamento do que qualquer dependência química.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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