Quase tão monumentais quanto suas virtudes, os tropeços do maior
estadista do século 20, relembrados em nova biografia, ajudam
profissionais e amadores, escreve Vilma Gryzinski:
Ele era racista, imperialista, xenófobo, islamofóbico. Cometeu um
erro militar estratégico tão catastrófico que custou 45 mil vidas entre
seus comandados.
Gastava muito mais do que tinha, aceitava favores de amigos ricos. Trocou de partido duas vezes.
Por qualquer padrão, seria alcoólatra, exceto pelo fato de ter
chegado aos 90 anos – um pouco mais, até, do que deveria uma lenda viva.
Ter um livro de Winston Churchill
à vista nunca sai de moda e é vantajoso para qualquer político que quer
parecer sério, Ele era racista, imperialista, xenófobo, islamofóbico.
Cometeu um erro militar estratégico tão catastrófico que custou 45 mil
vidas entre seus comandados.
Gastava muito mais do que tinha, aceitava favores de amigos ricos. Trocou de partido duas vezes.
Por qualquer padrão, seria alcoólatra, exceto pelo fato de ter
chegado aos 90 anos – um pouco mais, até, do que deveria uma lenda viva.
Ter um livro de Winston Churchill à vista nunca sai de moda e é vantajoso para qualquer político que quer parecer sério, principalmente se for mais à direita.
Mas Jair Bolsonaro
provocou outro ataque de fúria no esquerdista Guardian ao “se pintar
como o Churchill brasileiro” quando apareceu com um exemplar de Memórias
da Segunda Guerra Mundial na primeira entrevista como presidente eleito
– um exagero do jornal, explicável pelo estado de choque que a vitória
do próximo presidente provocou entre as hostes progressistas.
Não que o próprio Churchill desça fácil para a intelectualidade de
esquerda, especialmente na própria Inglaterra, onde acontece um fenômeno
interessante.
Quanto mais longe fica a II Guerra, mais gigantesca é a imagem de
Churchill entre a opinião pública, inclusive por filmes recentes que
levaram a uma espécie de redescoberta do homem que enfrentou “sozinho” a
avassaladora força da Alemanha nazista quando a Segunda Guerra ainda
não era mundial.
Ao mesmo tempo, mais avançam as forças politicamente corretas e os
historiadores de esquerda para tentar diminuir ou até desmontar sua
estatura épica.
Um das táticas é reforçar os erros de julgamento, tropeços morais e outros defeitos de Churchill.
Nada disso é diminuído no livro saudado como a melhor biografia já
escrita sobre o estadista a respeito do qual mais livros foram escritos
em toda a história.
Mais de mil, segundo o historiador Andrew Roberts, o autor que pegou
à unha o desafio de um tema supostamente esgotado e escreveu
Churchill: Caminhando com o Destino, que entrou em todas as listas de
melhores livros de 2018.
Como mensagem de fim de ano aos que não conseguem ficar longe de
Churchill por muito tempo e aos que estão chegando agora, vamos fazer um
rápido exercício de aprendizagem com os erros do mito.
EXCESSO DE AUTOCONFIANÇA
Personalidade agressiva, certeza de que podia construir a própria
história de grande homem e talento para a autopromoção foram as
características mais evidentes que levaram Churchill ao lugar onde
chegou.
Churchill foi militar, correspondente de guerra, escritor, político e
ministro de nove pastas diferentes antes do momento para o qual tinha
se preparado toda a vida, o dia 10 de maio de 1940, quando assumiu como
primeiro-ministro.
Três dias depois, proclamou diante da Câmara dos Comuns: “Não tenho
nada a oferecer a não ser sangue, sofrimento, lágrimas e suor.” Em menos
de três semanas, fez o discurso da “rendição nunca”, com os britânicos
tirados, derrotados, da França subjugada.
Prometer sacrifícios e jurar resistência na hora do maior isolamento é só para os muito grandes e certos da vitória final.
Mas foi justamente a excessiva autoconfiança que havia provocado o
maior desastre da carreira de Churchill, durante a I Guerra Mundial.
A fracassada invasão da Turquia, já em plena transição do império
otomano, através do estreito de Dardanelos, foi uma tentativa ambiciosa
de pegar de surpresa as Potências Centrais – os impérios alemão e
austro-húngaro – e aliados.
Como comandante civil da Marinha, nomeado com apenas 36 anos,
Churchill achava que uma segunda frente quebraria o cruento impasse da
guerra de trincheiras.
O desembarque em Galípoli – tão complicado que o comandante das
forças navais sofreu um colapso nervoso – e a protelada campanha
terrestre, encerrada em 1916, depois de nove desastrosos meses, fizeram
um total de 250 mil baixas de cada lado. Morreram 45 mil ingleses,
franceses, australianos e neozelandeses.
Churchill foi rebaixado, mas preferiu renunciar e ir pagar os pecados
como major do Exército no front na Bélgica. Adotou um comportamento de
tão alto risco, como exigia o manual dos oficiais e cavalheiros, nem
sempre seguido por todos, que acabou conquistando a simpatia dos
soldados comuns com atos de bravura no limite da insanidade.
Em quatro meses estava perdoado e de volta ao governo, como ministro
do Suprimento Bélico, mas a sombra de Galípoli o acompanhou por muito
tempo. “Dardanelos”, gritavam os opositores, como é típico do Parlamento
britânico, cada vez que ia discursar.
Churchill engrossou ainda mais o couro e passou a responder que a
campanha fracassada “poderia ter salvado milhões de vidas” e ele se
orgulhava disso.
Ter sangue frio para, três décadas depois, mandar centenas de
milhares de jovens para a guerra contra a tirania, tendo “gravado na
minha mente” o preço em vidas humanas de operações de contraofensiva,
foi particularmente impressionante no Dia D, o desembarque das forças
aliadas na Normandia.
Coragem com a vida dos outros só é fácil para os desprovidos de
compaixão humana. Além de não ser dessa estirpe, Churchill também só foi
impedido de ir com as tropas na primeira onda quando o rei George VI,
pai da rainha Elizabeth, ficou sabendo de seu plano secreto e o impediu.
2. POLITICAMENTE INCORRETO
Mesmo para um homem nascido na era vitoriana e impávido defensor da
superioridade do império britânico, Churchill dizia e escrevia
barbaridades.
Por exemplo: os indianos “procriam como coelhos”. Isso em plena “fome
de 1943” em Bengala, uma devastadora crise de abastecimento na Índia
sob domínio britânico, agravada pelas restrições da Segunda Guerra.
Churchill também não suportava Gandhi, “um advogado de Middle Temple,
agora posando de faquir e andando seminu pela escadaria do palácio do
vice-rei”. Middle Temple é a tradicionalíssima associação de advogados
da City de Londres.
Na questão da Índia, Churchill estava à direita da direita e achava
que qualquer concessão, como autonomia administrativa, levaria à
independência e ao fim do império britânico, no que não estava
inteiramente errado.
Sem contar que o “faquir seminu” também se mostrou tão bom quanto
ele, à sua maneira, em projetar a própria imagem, transformando-a em
retrato da nação insubmissa.
Sobre a religião muçulmana, escreveu num livro de 1899: “Hábitos
imprevidentes, sistemas agrícolas desleixados, métodos comerciais
indolentes e insegurança sobre a propriedade existem onde quer que os
seguidores do Profeta dominem ou vivam.”
“A influência da religião paralisa o desenvolvimento social dos que a
seguem. Não existe força mais retrógrada no mundo. Longe de estar
moribundo, o maometanismo é uma fé militante e proselitista.”
Isso hoje é crime. Literalmente: um militante de extrema-direita e
candidato fracassado foi detido em 2014 ao ler em público o trecho
acima.
John Charmley, historiador da corrente revisionista, diz que
Churchill acreditava em hierarquias raciais, com os brancos protestantes
no topo da pirâmide. “Churchill via a si mesmo e à Grã-Bretanha como os
vencedores de uma hierarquia social darwinista.”
Lição? Falou besteira, está falado. O melhor é não reincidir no erro.
Se nem Churchill escapa do julgamento da história, outros tampouco
escaparão.
Detalhe importante: ele escreveu sobre o Islã no contexto da campanha
de reconquista do Sudão, na qual lutou como jovem tenente de 23 anos.
Ingleses e egípcios enfrentaram a resistência das forças do Mahdi, uma
espécie de Antonio Conselheiro sudanês seguido por fanáticos sufistas.
Quanto foi para o ministério das Colônias, envolveu-se tanto com as
questões do Oriente Médio que uma cunhada escreveu a ele implorando que
“não se convertesse ao Islã”.
Churchill acreditava, como muitos depois dele, que era uma boa ideia
criar novos países mais ou menos alinhados com as lealdades tribais,
finalmente independentes do domínio otomano – inclusive ou
principalmente porque o império britânico os manteria sob tutela. E
ainda tinha o petróleo.
Contratou como assessor para o Departamento do Oriente Médio um certo
T. E, Lawrence, apaixonado pela causa da independência árabe.
3. DINHEIRO, DINHEIRO, DINHEIRO
Churchill era neto de duque – e de ninguém menos que o duque de
Marlborough. O primeiro da linhagem recebeu os títulos e as terras em
sinal de agradecimento da rainha Anne por serviços prestados no campo de
batalha, no começo do século 18.
Nasceu no fabuloso Palácio de Blenheim, o único castelo não
pertencente à família real ou à Igreja Anglicana que pode ser chamado de
“palácio”.
Mesmo assim, devido à estrita lei da primogenitura, seu pai, como
filho caçula, ficou com uma herança magra. Casou-se por dinheiro com a
americana Jennie Jerome, sem atentar para o fato de que o pai dela
jogava alto em Wall Street, com todos os riscos inerentes – um traço
herdado pelo neto.
“Churchill não tinha dinheiro nenhum”, resume o biógrafo Andrew
Roberts, identificando nisso um dos principais fatores do espantoso e
precoce sucesso dele.
Escrevendo para viver, Churchill praticamente foi um autodidata em
história e literatura. Aproveitava qualquer experiência pessoal e chegou
a propor um artigo sobre um acidente que havia sofrido em Nova York.
Coisa de “2 400 palavras”.
Problema: entrava menos dinheiro do que gastava. Comprava vinhos bons
e cavalos ruins para o polo. Usava ceroulas de seda cor de rosa. Jogava
muito, em cassinos e na bolsa.
No histórico maio de 1940, quando assumiu o governo e, depois, a
heróica resistência aos bombardeios alemães, tinha uma preocupação
adicional: pagar o alfaiate que fazia suas camisas.
O relato consta de um livro de título autoexplicativo, No More
Champagne, onde David Lough esmiuça os detalhes da caótica vida
financeira do homem que chegou a dever, em dinheiro atualizado, o
equivalente a 3,75 milhões de dólares.
Fez lobby, numa das fases em que quando perdeu cargos políticos, para duas petrolíferas britânicas, mas não deu certo.
Na crise das camisas (além dos fornecedores de vinho, de relógios e
de seus próprios editores, que cobravam livros com adiantamento já pago,
mas não escritos), foi salvo por uma discreta “contribuição” de um
admirador cheio de grana, Henry Strakosch, banqueiro judeu originário da
Áustria.
O cheque, equivalente hoje a 375 mil dólares, foi feito em nome de outra pessoa.
Sim, Churchill usou um laranja, embora o doador jamais tenha cobrado
qualquer favor ou sequer mencionado o assunto. Seu interesse supremo era
o antagonismo a Adolf Hitler e o papel único de Churchill.
Isso foi naquela época. Hoje, não passaria.
4. SEDE AO POTE
Churchill bebia e fazia guerra como se não fosse sobrar mais nem uma
garrafa de Pol Roger, sua champanhe predileta – era uma inteira na hora
do almoço, embora possivelmente menor do que o atual, depois de uma taça
durante o café da manhã.
Também começava o dia “lavando a boca” com um uísque. O “drinque do
papai”, como diziam seus filhos, o acompanhava a partir dali. Um
fundinho de Johnny Walker e o resto do copo cheio com soda. Iam uns
cinco ou seis.
Xerez antes do jantar, mais champanhe ou vinho tinto, e conhaque Hine
para terminar (a marca foi criada por um inglês na França, onde
continua sendo pronunciada “ine”).
O abstêmio Hitler o chamava de “maluco bêbado”, mas a capacidade de
enfiar o pé na jaca o ajudou quando foi a Moscou para uma conferência
com Stálin, em pleno ano de 1942.
Acostumado a obrigar todos os sicofantas à sua volta a beber sem
parar em banquetes intermináveis, Stálin partilhou um jantar tardio com
Churchill. No fim da noitada, o subsecretário das Relações Exteriores,
Alexander Cadogan, foi resgatar o chefe.
Depois, anotou: “Winston com certeza ficou impressionado e acho que o sentimento foi recíproco.”
Ao longo da conferência, Stálin pressionou, como sempre, por um
desembarque na frente ocidental, que aliviaria a pressão alemã na frente
russa. Ainda não era a hora.
Stálin só se animou quando Churchill prometeu que, se necessário, os
aliados bombardeariam “todas as casas em praticamente todas as cidades
alemãs”. Chegou perto disso.
Foi Hitler quem iniciou a barbárie da guerra total, sem distinção
entre militares e civis, mas os bombardeios aliados em massa mostraram
como o lado do bem chega perto do lado do mal quando são travadas lutas
existenciais.
Durante a Primeira Guerra, Churchill jactou-se a Margot Asquith,
mulher do primeiro-ministro à época: “Eu não perderia por nada nesse
mundo essa delícia de guerra.” Depois, pediu que ela não espalhasse a
palavra “delícia”.
Em 1919, como ministro da Guerra, Churchill defendeu “fortemente o
uso de gás venenoso contra tribos não civilizadas” no Afeganistão e no
Curdistão, para salvar vidas de soldados britânicos.
“O efeito moral seria tão bom que a perda de vidas se reduziria ao
mínimo. Não é necessário usar só os gases mais letais: podem ser usados
gases que causam grande incômodo e se espalham como o terror
personificado e ainda assim não deixam sequelas sérias para a maioria
dos afetados.”
Lição: Deus nos livre de uma guerra, como dizia algo acidamente o general Ernesto Geisel, e das escolhas terríveis que exigem.
Sobre a capacidade de beber, não define caráter nem estabelece
distinção entre aristocratas ingleses, tiranos georgianos ou operários
pernambucanos.
Mas só um Churchill para responder, quando perguntado quanto de
vermute queria no seu martini: “O suficiente para que eu veja a garrafa
do outro lado da sala.”
O martini Churchiil, portanto, é gin puro.
5. BOBEOU, DANÇOU
Churchill aprendeu com seus erros – e com seus acertos também., e com os erros e acertos de seus inimigos.
Sua vida e sua obra já seriam consideradas prodigiosas mesmo antes do
“momento crítico e sublime”, na definição de Conrad Black, os trinta
meses em que resistiu e inspirou os britânicos a resistir, sozinhos, à
máquina nazista.
Em 1941, Hitler cometeu o maior de todos os erros: desencanou da
Grã-Bretanha e invadiu a União Soviética. O resultado da Segunda Guerra,
olhado a posteriori, foi definido aí. Mas foram necessários mais quatro
terríveis anos até a rendição alemã, em maio de 1945.
Dois meses depois, Churchill e o Partido Conservador, famosamente,
perderam a eleição. O mito estava banhando pela glória da vitória, mas
os eleitores se preocupavam com o que aconteceria depois.
“A política é mais perigosa do que a guerra porque na guerra só se é
morto uma vez”, foi uma das frases memoráveis que deixou, de uma lista
que não acaba nunca.
Vale para todas as épocas e todos os lugares do mundo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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