Seria melhor os jovens lerem os trágicos do que lerem o mimimi
generalizado de hoje. Coluna de Luiz Felipe Pondé, publicada pela FSP:
Haveria mesmo um vínculo necessário entre felicidade e ignorância? As
pessoas mais felizes são as menos inteligentes? Ou isso seria apenas um
discurso para disfarçar a incapacidade de algumas pessoas para a
felicidade? E mais: seria a beleza "excessiva" numa mulher uma maldição
para ela e para os homens à sua volta?
Não vou cair aqui na armadilha de definir felicidade nem beleza.
Mantenha sua ansiedade sob controle quanto a essas definições. Existem
definições que só servem às almas rasas e burocráticas. Como sabem
muitos filósofos, mestres em definições, algumas coisas, quando
definidas, ficam mais difíceis de serem compreendidas.
A intuição imediata, às vezes, é mais clara do que o esforço de dar nomes complicados para experiências "simples".
Voltemos ao que interessa: haveria mesmo um vínculo necessário entre
felicidade e ignorância? E a beleza "excessiva" numa mulher seria uma
maldição?
Indaguemos a tradição clássica. Você não tem clareza quanto ao que é a
tradição clássica? Trata-se daquele conjunto de textos e autores que
atravessam as época sendo melhores, mais profundos e mais relevantes do
que a maioria dos outros. Sobrevivem a um monte de críticos que
desaparecem, enquanto os clássicos permanecem. Italo Calvino
(1923-1985), em seu "Por Que Ler os Clássicos", deixa isso bem claro.
Eu arriscaria dizer que poderíamos jogar no lixo grande parte do
ruído causado por alguns textos e autores contemporâneos e colocar no
lugar textos e autores antigos. Seria melhor os jovens lerem os trágicos
do que lerem o mimimi generalizado de hoje.
Ouçamos Ésquilo (525/524 a.C-456/455 a.C) em "Agamémnon", primeira peça da sua trilogia "Oresteia".
Numa conversa entre o Corifeu (personagem líder do coro nas tragédias
gregas) e Cassandra, uma bela escrava troiana recém-trazida a Argos
pelo vitorioso Agamémnon, temos uma ideia da visão grega trágica acerca
desses temas. "Não há dúvida que tens uma grande capacidade de
sofrimento e uma alma corajosa!", diz Corifeu. Cassandra responde: "As
pessoas felizes não ouvem palavras dessas...".
Cassandra é uma pitonisa (profetisa) nessa cena, isto é, ela conhece o
futuro: Agamémnon será morto pela sua esposa, a rainha Clitemnestra. E
Cassandra mesma será morta —não irei mais longe no enredo.
Ela sofre porque sabe disso tudo. Além do fato de ter sido feita
escrava "sexual" devido à sua beleza, porque sua cidade foi derrotada na
famosa guerra causada pela mulher mais bela da Grécia antiga, Helena de
Troia, apesar de os sofistas Górgias (485 a.C-380 a.C) e Protágoras
(490 a.C.-415 a.C.) negarem a culpa de Helena nessa guerra.
A questão de se a beleza "excessiva" numa mulher a destrói, assim como aos homens à sua volta, é consistente.
O Corifeu sabe da desgraça de Cassandra. De escrava do leito do rei
Agamémnon a pitonisa de seu assassinato pela esposa, Cassandra responde
ao Corifeu que as almas felizes não ouvem elogios acerca de sua
capacidade de sofrimento e sua coragem.
O sofrimento de Cassandra começa pela derrota de sua cidade, Troia,
arrastada a uma guerra causada pela bela Helena. Seu sofrimento avança
por causa de sua condição de mulher jovem desejável. É coroado por seu
saber acerca do que as pessoas normais não sabem, o saber acerca do
futuro.
A resposta de Cassandra nos remete à ideia de que a felicidade é
fruto da ausência de conhecimento prático da dor, causada seja por sua
condição de escrava do leito, seja por sua condição de pitonisa.
A ideia de que a prática é a única forma de ter virtudes de fato
aparece também em Aristóteles (384 a.C-322 a.C) em sua "Ética a
Nicômaco".
O vínculo entre conhecimento excessivo e infelicidade está, portanto, posto por Ésquilo.
Não se trata de dizer que ser melancólico seja chique. Trata-se de
saber que o conhecimento pode, sim, gerar uma prática da dor. A
ignorância é uma forma de proteção contra essa prática.
Outra virtude de Cassandra, a coragem, é também irmã da dor. O que
encanta o Corifeu é justamente sua postura altiva diante da desgraça.
Sendo nós todos mortais, os gregos se encantavam por aqueles que
enfrentavam o destino mortal sem medo. Esses merecem ser lembrados (uma
heroína é exatamente uma pessoa que merece ser lembrada).
A beleza de Cassandra e Helena marcam o vínculo entre sofrimento e
beleza. Qualquer mulher muito bonita sabe disso no silêncio de sua
solidão.
Resumo da ópera: não se adquirem virtudes em workshops felizes de fim de semana. Fuja deles.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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