No mundo imaginário das "pesquisas", Lula passa de “30%” a “40%” dos
votos. Na vida real, passa de zero para zero, pois não vai receber voto
algum. Mas essa salada de números é usada para vender um dos disparates
mais espetaculares da história eleitoral brasileira: sim, certo, a lei
está aí, mas uma eleição sem Lula seria um “constrangimento”. Pega mal
no New York Times. Põe em dúvida a pureza da nossa democracia. Esse,
sim, é o estelionato eleitoral transformado em obra-prima. Coluna de J. R. Guzzo, que sai na próxima edição impressa de Veja:
Há um curto-circuito mental no Brasil que pensa em política — e,
quanto mais esse Brasil pensa, piores são os resultados que produz.
Parece que “caiu o sistema”, como você vive ouvindo dizer quando precisa
de alguma coisa. Aí não adianta perder tempo batendo nessa ou naquela
tecla, porque nenhuma das opções oferecidas será válida. Nada é tão
espantoso, no presente momento de desordem cerebral que cerca a vida
pública brasileira, quanto “a candidatura Lula” à Presidência da
República. Não há nenhuma candidatura Lula. Mas, segundo nos dizem todos
os dias os meios de comunicação e os peritos em explicar que dia é
hoje, não há nenhuma outra candidatura tão essencial quanto justamente
essa, que não existe. O ex-presidente, o PT e a sua máquina de apoio
conseguiram desligar a chave geral do mecanismo que regula as eleições
brasileiras — e por causa dessa aberração ninguém menos que o Supremo
Tribunal Federal se verá obrigado a dizer que não, Lula não vai ser
candidato. Um servidor do cartório eleitoral já poderia ter dito
exatamente a mesma coisa há muito tempo. Mas estamos no Brasil, o
“sistema” está fora do ar e por isso temos de pagar por uma das farsas
mais velhacas já aplicadas na política deste país.
Vamos lá: Lula não pode ser candidato a presidente do Brasil da mesma
maneira como uma criança de 11 anos não pode. Por que não pode? Porque a
lei diz que a idade mínima para alguém exercer a Presidência é 35 anos.
Se a certidão de nascimento do candidato atestar que ele tem só 11, não
vai dar. Você pode dizer que é injusto, ou que é preconceito, ou que o
garoto lidera “todas as pesquisas” — não vai adiantar nada, porque a lei
diz que é proibido criança ser presidente da República. Da mesma forma,
o sujeito não pode se candidatar se estiver morando em Estocolmo, por
exemplo; precisa apresentar a sua conta de luz ou de gás e provar que
tem residência no Brasil, por mais que seja um gênio na arte de
governar. Está claro, também, que o candidato tem de ser brasileiro
nato. Um Barack Obama, digamos — seria uma maravilha de candidato, não é
mesmo? Imaginem onde o homem estaria no Datafolha a esta altura. Se
estivesse concorrendo, ganharia fácil de qualquer das figuras que estão
no páreo. Mas eis aí, outra vez: a lei diz que não pode. Também não pode
ser candidato um analfabeto, quem não pertence a partido algum ou um
cidadão que está internado no hospício.
Será que é assim tão difícil de entender? No seu caso, Lula não pode
ser candidato porque está condenado a doze anos de cadeia por corrupção e
lavagem de dinheiro, com sentença confirmada em segunda instância. Fim
de conversa: é o que está escrito na Lei da Ficha Limpa (assinada por
ele mesmo, quando era presidente), e a Lei da Ficha Limpa vale a
mesmíssima coisa que as outras leis, nem um miligrama a menos. Você pode
achar a condenação errada — ou certa, tanto faz. A autoridade eleitoral
não tem o direito de resolver isso; só diz se a candidatura está dentro
ou fora da regra. Caberia a um funcionário de balcão da repartição
pública onde se registram candidaturas resolver a história. Por que
raios, então, uma exigência tão alucinada como “a candidatura Lula” tem
de chegar ao Supremo Tribunal Federal? Porque o Brasil da elite
pensante, dos partidos e tribunais de Justiça, da mídia e redes sociais
etc. etc. aceitou ceder à sabotagem das atuais eleições por parte do
complexo Lula-PT e do que vem junto com ele: liberais civilizados que
têm horror da direita, intelectuais orgânicos, empreiteiros de obras
públicas mais o resto que se sabe.
O centro dessa trapaça, basicamente, está nas profecias eleitorais
publicadas a cada meia hora — sem elas, o mais provável é que Lula
estivesse largado no fundo da sua cela, em Curitiba. As “pesquisas”
criaram uma realidade artificial — uma situação em que o povo está
desesperado para votar num candidato, mas não pode porque “eles” não
deixam. É mentira. Lula existe nos institutos de opinião pública, mas
não existe nas ruas; não conseguiria ir a um campo de futebol sem um
exército de seguranças à sua volta. Nesse mundo imaginário, Lula passa
de “30%” a “40%” dos votos. Na vida real, passa de zero para zero, pois
não vai receber voto algum. Mas essa salada de números é usada para
vender um dos disparates mais espetaculares da história eleitoral
brasileira: sim, certo, a lei está aí, mas uma eleição sem Lula seria um
“constrangimento”. Pega mal no New York Times. Põe em dúvida a pureza
da nossa democracia. Esse, sim, é o estelionato eleitoral transformado
em obra-prima.
Publicado em VEJA de 5 de setembro de 2018, edição nº 2598
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