Texto de André Borges Uliano, do Instituto Politeia, via Gazeta do Povo:
Afinal de contas, o que é o livre mercado?
Para a compreensão
desse conceito é relevante partirmos da ideia de ação humana tal como
desenvolvida pela Escola Austríaca de Economia, para chegarmos a
explicar como seu exercício ocasiona a formação dos mercados.
Pois bem: “ação
humana é comportamento propositado. Também podemos dizer: ação é a
vontade posta em funcionamento, transformada em força motriz; é procurar
alcançar fins e objetivos” (MISES, 2010, p. 35). Em sentido idêntico,
porém em forma ainda mais sumarizada, define Huerta de Soto: “a ação
humana é todo o comportamento ou conduta deliberada” (2013, p. 35).
Sendo deliberada, a
ação humana inicia com a percepção de um fim. Esse fim é uma situação
julgada subjetivamente como de maior realização pelo agente. Essa
realização pode ser de qualquer gênero: física, financeira, espiritual,
cultural etc. Basta que o agente a perceba como uma situação em que
estaria em condição de maior plenitude pessoal (cf. ROTHBARD, 2009, p.
1-2). Após a percepção desse fim, a ação humana envolve o
estabelecimento de um plano para alcançá-lo. Os mecanismos utilizados
nesses planos são o que chamamos de meios (cf. MESEGUER, 2009, formato
digital).
Assim, podemos
concluir que a ação humana “envolve vias de ação seguidas pelo ser
humano para ‘afastar o desconforto’ e ficar em ‘melhor situação’”
(KIRZNER, 2012, p. 39). Isso desde que bem compreendidos os termos
desconforto e melhor situação, interpretando-os de modo amplo, como
sinônimos, respectivamente, de condição de menor e maior realização
pessoal sob qualquer aspecto.
Contudo, na vida
real, a atuação humana não é simples. Há uma infinidade de fins
alternativos, que não podem ser buscados ao mesmo tempo, e o prazo da
vida humana é finito, de modo que inviável enfileirar projetos sem
conta. Ademais, não é possível valer-se simultaneamente dos mesmos
recursos (meios) para inúmeros fins.
Por esses dois
motivos (restrição de tempo e de meios), a ação humana dá-se em um
contexto de escassez. Não é possível buscar tudo ao mesmo tempo nem
tampouco sucessivamente. Logo, os fins têm de ser escalonados numa ordem
de prioridades segundo o valor que o agente concede a cada um. E também
há uma infinidade de meios, que o autor seleciona segundo a utilidade
subjetivamente atribuída, ou seja, a idoneidade que percebe nele para
levá-lo a atingir o fim escolhido (cf. MISES, 2010, p. 125-130).
Os fins que o agente
posterga e os meios que efetivamente emprega para um plano de ação – não
podendo assim utilizá-los para outros planos, ao menos não ao mesmo
tempo – são o que podemos chamar de custo. É aquilo de que se abriu mão
para poder executar um certo projeto (cf. BUCHANAN, 2016, p. 69-72).
Perceba-se que a
definição do valor, com consequente ordenação das prioridades, e a
percepção da utilidade (aptidão para realizar os fins) são atividades
próprias da pessoa em seu contexto, de acordo com suas circunstâncias.
São em larga medida subjetivos. Por isso, os fins e os meios jamais
estão dados. Têm de ser percebidos, aprendidos e até criados (cf.
BOETTKE, 1992).
Saliente-se que a
ação humana sempre transcorre no tempo. Isso impõe dois elementos à ação
humana:incerteza e aprendizado (cf. IORIO, 2011, versão digital).
Primeiramente, a ação
humana é inexoravelmente incerta, uma vez que o planejamento ocorre no
presente e se desenvolve durante sua execução, enquanto o fim visado é
sempre futuro, de modo a tornar inviável a certeza de que será
alcançado, e qual será exatamente seu resultado final. Portanto, a ação
humana sempre tem uma tonalidade especulativa: o agente emprega os meios
e busca o fim, sem saber se obterá sucesso, e em qual medida.
Ademais, as escolhas
de fins e meios não são estáticas, porquanto sucedendo num transcurso
temporal, e sendo o conhecimento do ser humano sempre imperfeito – por
limitação quantitativa, porque jamais se sabe tudo; e falibilidade
qualitativa, porque sempre se está sujeito ao erro –, a ação humana está
propensa a alteração de curso, em decorrência de um aprendizado. As
informações disponíveis e transmissíveis – isto é, passíveis de serem
aprendidas – não estão concentradas em algum banco de dados que permita
seu aprendizado integral, de uma só vez; mas dispersas e fragmentadas
entre as várias pessoas da sociedade (cf. DE SOTO, 2010, p. 34-35). Por
isso, a tarefa de aprendizado é contínua, acidentada e inesgotável. O
que fazer, como fazer e para quem fazer são perguntas cuja resposta
exige aprendizado constante e infindável, além de estar sujeita a
mudanças.
Assim, além de
variáveis e múltiplas, as opções de fins e meios são mutáveis. Isso
porque a pessoa, ao agir e ver os demais agindo, percebe novos fins que
valora de modo prioritário, ou mesmo altera sua escala de valores. E
também aprende novos meios ou verifica a utilidade superior de meios que
antes não utilizava.
Ao tratar dos meios, chegamos a uma clara bifurcação que nos levará ao elemento que pretendemos definir: o mercado.
O que ocorre é que,
entre os vários meios passíveis de serem utilizados para alcançar um
fim, há dois gêneros bastante distintos: a ação direta, em que o próprio
agente alcança a situação pretendida, ainda que com a colaboração de
outras pessoas que desejam o mesmo fim; ou, as relações de intercâmbio,
em que o agente alcança a situação almejada mediante a troca com um
terceiro (cf. MESEGUER, 2009, formato digital). Este último caso, é um
exemplo peculiar de colaboração, porque os interesses são antagônicos:
cada um dos agentes da troca não quer o mesmo objeto; pelo contrário,
cada qual quer o objeto que está num primeiro momento na posse do outro.
Então, livremente intercambiam os bens.
E é dessas trocas que irão surgir os mercados.
Segundo as lições de
Menger, “os benefícios derivados das relações de intercâmbio são tão
grandes que pouco a pouco o comportamento intercambiador se vai
consolidando e se generalizando no seio dos grupos sociais que o adotam”
(MESEGUER, 2009, formato digital, tradução nossa).
De fato, o contrário
do mercado seria o comportamento autárquico: cada pessoa cultivaria,
colheria, prepararia, serviria seus alimentos; proveria os insumos para
vestuário, após fiaria e costuraria; buscaria de modo exclusivamente
autodidata a própria educação. Esse método demonstrou-se incapaz de
expandir as oportunidades de desenvolvimento pessoal, por exigir o
consumo integral (ou quase integral) do tempo para a subsistência.
Com o intercâmbio as
pessoas descobrem os benefícios da cooperação mediante a divisão
especializada do trabalho e troca dos itens: o conjunto dessas relações
de troca, se consideradas globalmente, é exatamente o que chamamos de
mercado.
Dessa descrição é
possível perceber alguns elementos essenciais para a existência de
mercados. Podemos descrever e enumerar esses elementos em seis.
Primeiramente, foi
dito que mercados são ambientes de trocas. Ora, para trocar algo é
necessário antes que se possua algo, que se seja proprietário de algo.
Logo, um primeiro requisito para existência de um mercado é o
reconhecimento da (1) propriedade privada. Essa propriedade privada, por
óbvio, não se torna produtiva por si só; ela depende da ação humana que
a faça gerar frutos passíveis de serem intercambiados. Portanto, um
mercado pressupõe (2) empreendedores. E como esses empreendedores são
pessoas, indivíduos reais, sua atuação só pode ser plenamente
compreendida sob o enfoque do individualismo metodológico. Esses
indivíduos, contudo, não atuam num vácuo. Eles agem dentro de um
contexto que, apesar de influenciável por eles, os precede. Ou seja, a
ação empreendedora dá-se dentro de um (3) ambiente institucional, daí
por que importante o estudo das instituições para o exame do mercado. Só
que o mercado que queremos estudar aqui não é qualquer mercado: é o
livre mercado. Por conseguinte, exige-se também nele que haja liberdade
de agir, liberdade de comportamento econômico. Ou seja: (4) livre
iniciativa e livre concorrência. Dentro do contexto de livre iniciativa e
concorrência, uma das liberdades mais importantes é a de fixação de
preços dos produtos, o que como veremos permite que se ajustem os
desejos permanentemente mutáveis dos agentes e a disponibilidade
(escassez) dos fatores. Isto é: é necessário que haja preços de mercado
que somados aos outros elementos já mencionados permitem o (5) cálculo
econômico (5). Por fim, a existência do livre mercado impõe a (6)
rejeição de sua antítese: economia planificada e propriedade comunal.
É interessante abrir
aqui um parêntese para pontuar que – apesar de a construção original de
Ludwig Von Mises sobre a ação humana basear-se em uma nomenclatura de
matiz filosófica kantiana – é possível amparar esse desenvolvimento em
bases aristotélico-tomistas. A busca da conversão da chave conceitual da
Escola Austríaca de Economia em termos aristotélico-tomistas foi
inclusive buscada na tese de doutorado do economista argentino Gabriel
J. Zanotti: “Fundamentos Filosóficos y Epistemológicos de la
Praxeología“.
De fato, o economista
e historiador, adepto da Escola Austríaca, Thomas E. Woods Jr., em seu
livro The Church and the Market: a Catholic Defense of the Free Economy,
inclusive anota que Rothbard expressamente se baseava em uma abordagem
tomista (cf. 2015, p. 15), e que a Escola Austríaca foi influenciada por
um caldo cultural católico, em razão da descendência de Carl Menger.
Esta última tese
também é defendida por Jesus Huerta de Soto, em razão da influência dos
proto-austríacos, pensadores católicos da Escolástica tardia (cf. 2010,
p. 49-55). Em artigo sobre o pensamento cultural de Ludwig Von Mises,
Jeffrey A. Tucker e Llewellyn H. Rockwell Jr afirmam que a atmosfera
cultural em que surge a Escola Austríaca de economia era profundamente
católica, o que deixou uma influência subjacente no pensamento de seus
fundadores: “a cultura da Áustria de Mises, assim como da Universidade
de Viena, onde estudou, era profundamente católica. E, aliás, a tradição
da escola austríaca de economia que Mises seguia teve, como fundador,
Carl Menger, discípulo do filósofo tomista Franz Brentano (1838-1917).
As ideias econômicas de Menger, por sua vez, têm muito em comum com as
dos escolásticos tardios” (2013, p. 210).
***
BOETTKE,
Peter J., Entrepreneurship. In: The Blackwell Dictionary of
Twentieth-Century Social Thought, pp. 196-198, William Outhwaite and Tom
Bottomore, eds., Basil Blackwell, 1992. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=1530931.
BUCHANAN, James M. Custo e Escolha: uma indagação em teoria econômica. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 2016.
DE SOTO, Jesus Huerta. A Escola Austríaca. São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises, 2010.
IORIO, Ubiratan Jorge. Ação, Tempo e Conhecimento: a Escola Austríaca de Economia. São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises, 2011.
KIRZNER, Israel M. Competição e Atividade Empresarial. 2ª ed. São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises, 2012.
MESEGUER,
César M. La teoria Evolutiva de las Instituciones: la perspectiva
austriaca. 2ª ed. Madrid: Nueva Biblioteca de la Libertad, 2009.
MISES, Ludwig Von. Ação Humana. 3.1ª ed. São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises, 2010.
ROCKWELL
Jr., Llewellyn H; TUCKER, Jeffrey A. O pensamento cultural de Ludwig
Von Mises. In: MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e
Economia. Vol. 1, nº 1: jan-jun 2013. São Paulo: IMB, p. 191-213.
ROTHBARD, Murray N. Man, Economy and State. 2ª ed. Auburn: Ludwig Von Mises Institute, 2009.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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