Conhecida
como “Jardim do Éden”, pela leveza com que solta presos e suspende
ações de investigação, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal
(STF), composta de cinco ministros, tem sido uma potente ameaça aos
avanços da Lava-Jato, a maior e a mais bem-sucedida operação contra a
corrupção da história do Brasil. Acompanhe-se o desempenho
multipartidário da turma na semana passada: trancou uma ação penal
contra um deputado do PSDB, manteve a liberdade de um operador
financeiro do MDB, anulou a busca e apreensão no apartamento de uma
senadora do PT, garantiu a liberdade a um ex-assessor do PP e, na
decisão mais barulhenta, tirou da prisão o ex-ministro José Dirceu,
condenado a mais de trinta anos por corrupção, lavagem de dinheiro e
organização criminosa.
A
maioria dos ministros do “Jardim do Éden” — Gilmar Mendes, o mais ativo e
aguerrido de todos, dono de sólida base jurídica; Dias Toffoli, o mais
jovem e único que foi reprovado em concurso para juiz de primeira
instância; e Ricardo Lewandowski, outro com vasta bagagem jurídica e
dono de atuação discretíssima — pensa e age de maneira muita parecida.
Os três são críticos severos dos métodos de investigação da Lava-Jato.
Já se posicionaram contra as prisões preventivas alongadas, os acordos
de delação premiada e o cumprimento da pena após a condenação em segunda
instância — três dos pilares que fizeram a glória da operação. Só em um
debate jurídico raso se pode acusar os três ministros de jogarem a
favor da corrução e da impunidade, votando movidos por interesses
inconfessáveis. Sob qualquer aspecto que se examine a questão, eles
desempenham seu ofício com ética e correção. Só que suas decisões têm um
efeito inequívoco e que não deve ser ignorado: abalam as estruturas
legais que sustentam a Lava-Jato.
No
plenário do STF, composto de onze magistrados, a posição dos três
ministros ainda é minoritária. Por causa disso — e somente por causa
disso —, figurões do mundo político como o ex-presidente Lula e o
ex-deputado Eduardo Cunha estão presos. Como eles, na Lava-Jato, mais de
300 criminosos de colarinho branco já foram parar na cadeia. Esse
cenário tão raro na história jurídica do país e tão infernal para os
corruptos aos poucos está começando a mudar e, em breve, pode sofrer uma
reviravolta definitiva, recolocando o país na velha ciranda da
impunidade.
Na
decisão que libertou o ex-ministro José Dirceu, os três tocaram afinados
como numa sinfonia. Em sessão extraordinária, Dias Toffoli determinou a
libertação imediata do petista, até então preso na Papuda, em Brasília.
Toffoli, relator do caso, não foi acionado neste ponto pelos advogados
de Dirceu, como é usual. Ele agiu “de ofício”, sem ser provocado, por
entender que o caso de Dirceu exigia uma solução imediata. A sentença
foi referendada sem reparos por Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. O
petista estava preso desde o fim de maio, por ordem do Tribunal Regional
Federal da 4ª Região (TRF-4), em Porto Alegre. Ao se justificar,
Toffoli explicou que a defesa de Dirceu ainda estava recorrendo ao
Superior Tribunal de Justiça (STJ) e era “plausível” que ele revertesse
sua condenação. Sendo assim, concluíram os três ministros, não havia
razão para mantê-lo preso.
Na
prática, o que esteve em jogo na libertação de Dirceu é um dos pilares
da Lava-Jato: a possibilidade de execução antecipada das penas. Em
outubro de 2016, o plenário do STF, por 6 votos a 5, concluiu que os
condenados podiam ir para a cadeia logo depois de esgotados os recursos
em tribunais de segundo grau. Assim começou a ser feito, e criminosos de
colarinho branco, em contraste com a tradição leniente da Justiça
brasileira com os mais ricos, passaram a ir para o xilindró. Antes
disso, réus abastados contratavam bons advogados para postergar
indefinidamente o cumprimento da pena, fazendo uso, sempre em liberdade,
de uma lista interminável de recursos. A decisão de 2016 permitiu a
prisão do ex-presidente Lula e do ex-deputado Eduardo Cunha, ambos
condenados em segunda instância. Nos velhos tempos de impunidade, os
dois seguramente estariam lançando mão de recursos atrás de recursos
para continuar livres.
Há
argumentos sólidos contra e a favor da prisão em segunda instância. Os
três ministros do “Jardim do Éden”, mais uns dois ou três colegas,
argumentam que o cumprimento antecipado da pena fere a Constituição, que
diz claramente que ninguém será considerado culpado até o “trânsito em
julgado”, jargão jurídico para dizer o seguinte: até que todos os
recursos, em todas as instâncias da Justiça, incluindo o próprio STF,
tenham sido devidamente analisados. Na prática, o país inteiro sabe o
que “trânsito em julgado” significa: numa Justiça abarrotada de
processos e tradicionalmente sensível aos pleitos dos mais abastados,
quer dizer o Dia de São Nunca.
Segunda Turma: sensibilidade para as demandas dos criminosos de colarinho branco. |
Sobretudo
em vista do histórico de impunidade do país, os ministros favoráveis à
prisão imediata também têm fundamentos sólidos. Argumentam que não é um
instituto antidemocrático, nem restringe o direito de defesa dos
condenados, que continuam podendo recorrer até as últimas instâncias da
Justiça. A seu favor está o exemplo de democracias, como Estados Unidos,
Reino Unido e Canadá, que prendem os condenados na segunda instância e,
em alguns casos, até mesmo depois de condenados em primeiro grau. E
ninguém diz que esses países não respeitam o princípio da presunção de
inocência. Nesses lugares, é comum os réus saírem do tribunal direto
para o presídio. O princípio fez com que criminosos como Bernard Madoff,
considerado um semideus do mercado financeiro até a descoberta de que
arquitetara a maior fraude financeira de Wall Street, fossem direto do
banco dos réus para a prisão. Madoff foi condenado a 150 anos de cadeia e
nunca deixou o cárcere. Detalhe: tem 80 anos, sofreu um ataque cardíaco
e foi diagnosticado com câncer. No Brasil de Paulo Maluf e Adriana
Ancelmo, provavelmente Madoff estaria no conforto de uma prisão
domiciliar.
Em 2016,
quando o STF decidiu a favor das prisões imediatas, o ministro Gilmar
Mendes era um dos incentivadores da medida e foi decisivo para o placar
apertadíssimo de 6 a 5. Ajudou, assim, a libertar a energia da
Lava-Jato, que desmontou o petrolão e, de quebra, desconstruiu o governo
do PT. Só que, depois disso, Mendes começou a mudar de posição. O que
antes lhe parecia bom e justo passou a lhe parecer o contrário. Seu
argumento era que o STF havia apenas autorizado a prisão, mas os juízes
estavam entendendo que a ordem era mandatória. “Nós admitimos que será
permitida a prisão a partir da decisão de 2º grau, mas não dissemos que
ela é obrigatória”, afirma o ministro. Com a mudança de posição de
Gilmar, o placar de 6 a 5 não se repetirá no caso de uma nova votação.
Em setembro, é bem possível que a virada aconteça: nesse mês, quem
assume a presidência do STF é o ministro Dias Toffoli — e ninguém o
impedirá de pautar, de novo, o mesmo assunto de 2016.
Na
sessão que soltou José Dirceu, o ministro Edson Fachin, que integra a
Segunda Turma mas reza por outra cartilha, chegou a sugerir que seu
colega estava usando de subterfúgios retóricos para burlar a decisão de
2016. A certa altura, quando se debatia o tema, Fachin disse a Toffoli:
“Nós dois estamos entendendo o que estamos falando”. Toffoli, em
conversas reservadas com colegas, já adiantou que, ao assumir a
presidência da corte, vai pôr em pauta o assunto da prisão em segunda
instância — coisa que a atual presidente, Cármen Lúcia, tem se negado a
fazer, apesar da insistente pressão do ministro Marco Aurélio Mello. Se o
placar de 6 a 5 virar, a Lava-Jato perderá seu mais vigoroso ponto de
sustentação.
Dos três
ministros da Segunda Turma, Gilmar Mendes é o que mais confronta os
métodos da Lava-Jato, e não só das prisões em segunda instância. Virou o
herói improvável de muitos petistas, depois de ter sido seu algoz. O
magistrado é um crítico ácido da maneira como os juízes — principalmente
Marcelo Bretas, o responsável pela operação no Rio de Janeiro — têm
decretado as prisões preventivas de investigados. Para ele, que já
mandou soltar mais de vinte presos, há falhas na forma e exagero na
duração. A lei não fixa um prazo máximo para manter alguém preso
preventivamente, mas estabelece critérios para a decretação da prisão.
São pressupostos segundo os quais a subjetividade do magistrado é
determinante. O petista Antonio Palocci está preso preventivamente há
quase dois anos. “Estão usando a prisão provisória para obter delação, e
isso é tortura”, acusa Mendes. Palocci está preso preventivamente há
quase 650 dias. Depois de quase dois anos, fechou um acordo de delação
com a Polícia Federal.
Os três
ministros que se voltam contra os pilares da Lava-Jato — as execuções de
pena em segunda instância, as prisões preventivas e as delações
premiadas — podem, sim, ter argumentos jurídicos respeitáveis, mas
parecem ignorar o efeito prático de suas decisões. Até agora, com base
nesse tripé, a Lava-Jato tem sido conduzida sob o rigor das decisões dos
tribunais, que têm contido seus erros e abusos aqui e ali. Sobretudo,
está revertendo um histórico dramático de proteção para os criminosos de
colarinho branco. Os ministros, que são chamados de “bruxas da
Lava-Jato”, parecem não se sensibilizar com o fato de que algo precisa
ser feito para recolocar o Brasil na senda das nações civilizadas que
prendem os ladrões do dinheiro público.
Enquanto
isso não acontece, o STF continua sendo uma corte capaz de decidir A e,
depois, decidir B. Se a Segunda Turma é chamada de “Jardim do Éden”,
por ser mansa com os acusados, a outra, a Primeira Turma, já foi
apelidada de “Câmara de Gás”, porque entre os cinco ministros que a
compõem há maioria sólida em defesa da Lava-Jato. A confusão, provocada
por decisões contrárias, causa instabilidade jurídica e incertezas sobre
o futuro da operação. “Essas decisões dos ministros Gilmar, Toffoli e
Lewandowski tiram o Brasil dos trilhos que poderiam conduzir ao
rompimento da impunidade dos poderosos. São imensos retrocessos”, diz o
procurador Deltan Dallagnol. Pode-se alegar que Dallagnol esteja puxando
a brasa para sua sardinha, já que coordena a força-tarefa da Lava-Jato
em Curitiba, mas ele não é o único a pensar assim. Para Joaquim Falcão,
professor de direito da Fundação Getulio Vargas, o quadro é ainda mais
grave: “A resposta para a divisão do Supremo não se encontra na lógica
das interpretações constitucionais. Deixou de ser há muito tempo um
debate político-constitucional e hoje é política pura. Alguns se
insurgem contra uma ditadura da minoria, contra o fato de três ministros
controlarem os onze. O STF é, ao mesmo tempo, agressor e vítima de si
mesmo. É o alfaiate do próprio caos”.
Publicado em VEJA de 4 de julho de 2018, edição nº 2589
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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