Alberto Gonçalves
escreve sobre as amplas razões que tem para não comemorar o "Abril de
1974". Não porque seja um saudosista do salazarismo: "se
nos livrámos de trocar uma ditadura rançosa por uma ditadura
sanguinária, não nos livrámos da propensão para o atraso de vida que nos
tolhe há séculos. Quarenta
e quatro anos passados, estamos assim, dependentes, tolhidos,
patriotas, tontos e entregues a uma casta renovável e sortida de
burgessos com manha, cuja solitária habilidade é a de convencer-nos da
justiça dos seus privilégios. Celebrar isto? Vou ali e não volto, como diria o secretário-geral das Nações Unidas". Segue o texto completo, via Observador:
São diversas as
razões que me impedem de desfilar a cada 25 de Abril. A primeira é a
aversão a manifestações públicas, para cúmulo colectivas. Se já é
ridículo que uma pessoa se ache tão interessante a ponto de ter de expôr
os seus sentimentos ao resto da humanidade, é duplamente patético que
se sinta obrigada a fazê-lo em bando. Um sujeito sozinho aos berros nos
Aliados ou no Rossio ainda merece algum respeito (e a atenção do INEM).
Acompanhado por milhares de ociosos idênticos, não merece respeito
nenhum.
O segundo motivo é o
absurdo de comemorar datas. Incluindo a do meu aniversário, não conheço
qualquer data digna de festejos ou baderna. Desde o início dos tempos
que, de acordo com os paladares, diariamente acontecem tremores, bons,
maus, terríveis, desmesurados, ínfimos, incompreensíveis e polémicos. Se
sairmos à rua a “assinalar” todos, acabaremos exaustos, resfriados e
com a taxa de produtividade do sindicalista médio. Além disso, não
haverá trânsito que resista.
O terceiro motivo
pelo qual não celebro “Abril” prende-se com o próprio “Abril”. Serei
picuinhas, mas causar-me-ia certa impressão passear em prol da
democracia junto de criaturas que sempre a combateram. Não querendo
generalizar, o tradicional cortejo lisboeta é das maiores concentrações
de intolerantes que o país é capaz de agrupar. E a toponímia é tão
irónica quanto os propósitos: boa parte daquela gente “desce” a Avenida
da Liberdade em nome de um conceito que lhe é fundamentalmente estranho.
Por regra, os rostos reconhecíveis na romaria do 25/4 oscilam entre
fanáticos de proibições, na melhor das hipóteses, e devotos de
totalitarismos, na pior. Mesmo os que não idolatram abertamente tiranos
célebres e obscuros entretêm-se a conceber interditos e calar
“blasfémias”. É peculiar, por exemplo, que candidatos a censores se
congratulem com o fim da censura. Ou que prepotentes naturais recordem
com rancor a prepotência alheia. No fundo, eles descem a Liberdade
porque não saberiam subi-la nem que tentassem.
Por estas e por
outras (estas chegavam), o meu contacto com o 25 de Abril de 2018
limitou-se às cerimónias oficiais. Por diligência minha? Não endoideci.
Sucede que o carro viera da revisão e estava sintonizado numa estação de
rádio, meio que sinceramente julgava extinto. De repente, apanhei com a
voz de uma senhora que evocava “o secretário-geral das Nações Unidas,
António Guterres”. O meu impulso foi mudar a engenhoca para um disco de
John Lee Hooker em que me ando a viciar. Porém, o humor retorcido que
Deus me deu viu-se seduzido pelo descaramento de alguém que, a fim de
emitir uma trivialidade embaraçosa, cita a figura em causa. Citar Gandhi
ou Mandela é apenas aborrecido: citar o eng. Guterres revela um talento
burlesco que me transforma num ouvinte atento.
E atento ouvi a tal
senhora falar no “tecto de vidro que impede as mulheres de chegarem aos
lugares topo”, na “nova realidade” em que vivemos “porque decidimos [ela
e os amigos] pôr fim à austeridade”, na dra. Pintasilgo (com um único
“s”). A terminar, o cliché apoteótico: “Cumprir a democracia e viver a
liberdade é evitar fraturas e conflitualidades entre jovens e idosos,
entre empregados e desempregados, entre patrões e trabalhadores, entre o
interior e o litoral. Cumprir a Democracia e viver a Liberdade é não
deixar mais que nenhuma mulher seja agredida ou assassinada numa relação
de intimidade”.
A senhora, soube
depois, chama-se Elza (com “z”) Pais e é deputada do PS. Também soube
depois que o portentoso vazio dessa retórica uniu a quase totalidade dos
discursos, com a excepção do do dr. Ferro Rodrigues. O presidente do
parlamento conseguiu ir além do vazio e aproveitou a oportunidade para
defender os compinchas envolvidos em trafulhices demográficas. No final,
alguns parlamentares, de florzinha ao peito, entoaram a “Grândola”
fatal. Nas bancadas, os “capitães” abençoaram a eucaristia. Se se
pudesse morrer de ridículo, teríamos tido uma chacina.
Aqui chegado, para
evitar equívocos, esclareço não ser saudosista do salazarismo. Não
aprecio regimes controlados por nacionalistas rústicos, inimigos do
comércio livre, da propriedade privada, do direito à expressão, dos
“desvios” à moral vigente e, em suma, da possibilidade de o indivíduo
decidir estrafegar o seu destino conforme entender. Aliás, são esses os
exactos motivos que me excluem da habitual discussão em volta da
propriedade de “Abril”. Ano após ano, a nossa melancólica “direita”
procura reivindicar uma herança de que a esquerda se apoderou e da qual
me excluo sem remorsos. Por mim, podem ficar com os cravos, o “Zeca”, a
gaivota, a aliança povo/MFA e restante folclore. Descontado o folclore, e
à semelhança do Natal, “Abril” é o que um homem quiser. E os homens que
o fizeram, primeiro, e os homens que o tomaram, de seguida, quiseram
imensas e contraditórias coisas. Um protesto corporativo. Um golpe de
Estado. Uma democracia à “europeia”. Um paraíso soviético. Um inferno
cubano. Um manicómio. Somados os pesos e os contrapesos, sobrou-nos o
meio termo. Se nos livrámos de trocar uma ditadura rançosa por uma
ditadura sanguinária, não nos livrámos da propensão para o atraso de
vida que nos tolhe há séculos.
Quarenta e quatro
anos passados, estamos assim, dependentes, tolhidos, patriotas, tontos e
entregues a uma casta renovável e sortida de burgessos com manha, cuja
solitária habilidade é a de convencer-nos da justiça dos seus
privilégios.
Celebrar isto? Vou ali e não volto, como diria o secretário-geral das Nações Unidas.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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