Reportagem de capa da revista Veja desta semana aborda o escândalo Ouvidos Moucos na UFSC e conclui que a montanha pariu um rato: "PF
acusou Luiz Carlos Olivo de integrar esquema criminoso que desviou R$
80 milhões, e ele se suicidou. Agora, sai o relatório final — e o
resultado é pífio". A reportagem é de Mônica Weinberg, Luísa Bustamante e
Fernando Molica:
O mês de
setembro do ano passado foi trágico para a história do combate à
corrupção no Brasil. No dia 14, a Polícia Federal deflagrou uma operação
para desarticular um “esquema criminoso” que desviara “mais de 80
milhões de reais” dos fundos destinados à Universidade Federal de Santa
Catarina. Ao anunciar a operação em sua página no Facebook, seguida por
2,7 milhões de pessoas, a Polícia Federal ainda acrescentou duas
hashtags para festejar sua atuação: #euconfionapf e #issoaquiépf. Na
operação, os agentes prenderam sete pessoas, entre as quais o professor
Luiz Carlos Cancellier de Olivo, então com 59 anos, reitor da
universidade. Cancellier foi algemado, acorrentado pelos pés e submetido
a revista íntima. De uniforme cor de laranja, permaneceu trinta horas
detido, parte delas em um presídio de segurança máxima, e, ao sair,
ficou proibido de pisar no câmpus da universidade, até ser liberado por
ordem judicial. A experiência traumática lhe deixou uma cicatriz
indelével. Dezoito dias depois, suicidou-se, pulando do 7º andar de um
shopping center em Florianópolis. Agora, após sete meses, VEJA teve
acesso exclusivo às 6 000 páginas do inquérito e às 800 páginas do
relatório final da investigação. É uma leitura perturbadora pelo excesso
de insinuações e escassez de provas.
No
relatório, o “esquema criminoso” revelou-se um punhado de funcionários
de médio escalão envolvidos numa teia de operações miúdas e amadoras. Os
“mais de 80 milhões de reais” sumiram. O valor, na verdade, referia-se
ao total de verbas que a UFSC recebeu ao longo de dez anos, e não ao
total dos desvios, como a própria Polícia Federal reconheceu mais tarde.
Sobre o montante efetivamente desviado, a investigação não chegou a
conclusão alguma, perdida no emaranhado de pequenas transações mais ou
menos obscuras. Quanto ao reitor, suspeito de proteger a organização
criminosa, o inquérito é dolorosamente pífio.
O
relatório dispara uma fuzilaria verbal contra o reitor. Afirma que
“Cancellier detinha pleno conhecimento sobre o funcionamento e a
dinâmica das fundações e de todas as irregularidades”. Assegura, ainda,
que o reitor “agiu decisivamente em condutas impugnadas nesta
investigação” e participou de uma “orcrim” (abreviação da polícia para
organização criminosa). O aspecto alarmante é que as afirmações do
relatório não se baseiam em provas conclusivas. Não há um depoimento
peremptório, um documento inequívoco, uma prova cabal. O texto limita-se
a especular sobre a intenção de troca de funcionários e sobre o
conteúdo real de conversas no WhatsApp, a apontar a estranheza de
algumas coincidências, e chega até a fazer referências a fofocas e
“comentários”. O Ministério Público Federal, num sinal de que não
considera o trabalho acabado, já pediu mais 180 dias para examiná-lo.
Ao
final, os investigadores pedem o indiciamento de 23 pessoas, com base na
suposta ocorrência contumaz de pequenos golpes praticados por
funcionários e beneficiários de bolsas do governo. No roteiro de
irregularidades, as mais citadas são a facilitação de recebimento de
benefício duplo, arranjos entre colegas para aumentar o ganho mensal,
colocação de parentes e amigos em posições-chave e vantagens indevidas
na contratação de serviços de terceiros. Disso resultam acusações de
lavagem de dinheiro a organização criminosa, passando por peculato e
falsidade ideológica. Mas, também sobre esses 23 listados, os elementos e
indícios são frágeis. Ficam na esfera de possibilidades, desconfianças,
suspeitas vagas. A leitura das 6 000 páginas do inquérito, mas
principalmente das 800 páginas do relatório final, passa a impressão de
que a PF, acuada pela suspeita de que agiu de modo arbitrário ao pedir a
prisão do reitor, se empenhou em superdimensionar as acusações,
dando-lhes cores mais intensas do que a prudência recomendaria.
A PF
apresenta depoimentos, aos quais anexa gravações de conversas e
documentos como contratos de trabalho e listas de presença. Também lança
mão de um relatório do Tribunal de Contas da União que, já em 2015,
recomendava controles mais rígidos no uso de verba pública pela UFSC e
atribuía atos suspeitos a cinco dos indiciados. Cancellier não está
entre eles. Espremendo-se as denúncias contidas no inquérito, extrai-se a
evidência de um esforço enorme da PF — às vezes além do limite — para
inculpar o reitor, que está excluído do processo. Ao apresentar a lista
de envolvidos, o delegado Nelson Napp, encarregado do caso, escreveu na
página 3 601 do inquérito: “Deixo de indiciar Luiz Carlos Cancellier de
Olivo em razão da extinção da punibilidade nos termos do artigo 107
inciso 1 do Código Penal”. Ou seja, o reitor não está lá porque morreu.
Mas há
uma novidade na investigação. O delegado Napp inclui, entre os
indiciados, Mikhail Cancellier, de 30 anos, filho único do reitor e
também professor de direito na UFSC. Chamado a depor no dia 28 de março,
ele foi confrontado com três depósitos variando entre 1 600 e 4 000
reais em sua conta, em 2013. O total dos depósitos chegou a 7 102 reais.
Segundo a PF, o dinheiro foi transferido de um projeto que o reitor
coordenava para a conta do professor Gilberto Moritz, outro indiciado.
Moritz, por sua vez, fez as remessas para Mikhail. Importante: só a
terceira movimentação é respaldada por documentos. Sobre o resto, diz o
inquérito: “Comenta-se que os recursos transferidos para Gilberto Moritz
foram oriundos do projeto coordenado por Luiz Carlos Cancellier”.
Indagado sobre a origem do dinheiro, o filho do reitor “afirmou que não
se recorda”. Sem saber se o dinheiro é lícito ou ilícito, a polícia
pediu seu indiciamento. Pessoas próximas acreditam que os depósitos eram
pagamentos que o próprio Cancellier tinha a receber, e que ele teria
dado instruções para que fossem encaminhados diretamente para a conta do
filho. Nessa época, 2013, o rapaz ainda estudava e recebia constante
ajuda financeira do pai. A inclusão de seu nome no inquérito não foi de
todo inesperada. No dia do enterro, 3 de outubro, Mikhail ouviu de um
amigo advogado: “Vão fazer uma devassa na vida de vocês. Prepare-se”.
Quando
foi preso, em setembro do ano passado, o reitor foi acusado de tentar
obstruir as investigações sobre o “esquema criminoso”. Para fundamentar o
pedido de prisão que formulou à Justiça, a Polícia Federal apresentou
cinco razões. No único depoimento que prestou, no mesmo dia em que foi
deslocado para o presídio de segurança máxima, o reitor rebateu, durante
cinco horas, todas as cinco suspeitas da PF. Em seu relatório, a
polícia ignora a defesa do reitor e, ao contrário, reforça uma a uma as
denúncias contra Cancellier, ainda que sem novos elementos. A elas:
■ A
polícia acusou o reitor de criar “a Secretaria de Educação a Distância
(EaD) para estar acima do já existente Núcleo Universidade Aberta,
vinculando-a diretamente à reitoria”. O reitor, na suspeita policial,
fez isso para sedimentar seu poder sobre a área que comandava antes de
assumir a reitoria, e assim prosseguir com o “esquema criminoso”. O
relatório final, porém, não traz nada sólido para sustentar a suspeita —
ancora-se apenas no fato de que o reitor nomeou alguns investigados
para a novo órgão. Em seu depoimento, registrado na página 569 do
inquérito, Cancellier explica que, na verdade, apenas reativou uma
secretaria que fora extinta e estava fazendo falta. Era o órgão que
promovia “a centralização da cadeia hierárquica do programa de educação a
distância”, disse.
■ A
polícia acusou o reitor de nomear “no âmbito da EaD os professores do
grupo que mantiveram a política de desvios e direcionamento nos
pagamentos das bolsas”. A PF aponta como evidência de armação um suposto
recado do reitor a um funcionário que seria afastado para abrir vaga:
“Para não me constranger, pode pedir para sair”. Na página 570,
Cancellier dá sua versão. Diz que fez apenas três trocas de quadros na
área de ensino a distância e as atribui a “razões discricionárias de
melhoria de gestão”. Deu uma justificativa técnica, a de que não
considerava “adequado manter no colegiado (…) dois membros oriundos de
um mesmo curso de graduação”, como era o caso. A PF não conseguiu
avançar nessa suspeita.
■ A
polícia acusou o reitor de procurar “obstaculizar as tentativas internas
sobre as irregularidades na gestão de recursos do EaD”. O inquérito
descreve que a suspeita decorre de uma denúncia anônima recebida pelo
corregedor Rodolfo Hickel do Prado, o primeiro a falar em uso irregular
de verbas. De acordo com a polícia, Cancellier teria criado barreiras
para dificultar o andamento do caso, argumento repetido em três outros
depoimentos. O reitor, por seu lado, garantiu que nunca tentou “impedir,
embaraçar ou amenizar a investigação administrativa”, até porque, mesmo
sabendo da existência da denúncia, demorou meses para tomar
conhecimento de seu exato teor. Foi mais longe: confirmou que, em junho,
decidiu “avocar os autos da sindicância investigativa a fim de empregar
maior celeridade à apuração”. Passados seis meses da denúncia anônima,
ele argumentou, a corregedoria ainda não havia apresentado um relatório.
Prado foi exonerado em fevereiro, reverteu a decisão com uma liminar em
abril, mas ainda não retomou o cargo. A PF também não avança nessa
suspeita.
■ A
polícia acusou o reitor de fazer pressão “para a saída da professora
Taisa Dias da cadeira de coordenadora do EaD do curso de administração”.
Ela teria entregado nas mãos do reitor comprovação de uso indevido de
verbas, coisa que o reitor, em seu depoimento, negou taxativamente.
Disse que Taisa jamais lhe mostrara documento algum a esse respeito.
Questionado se tinha interesse na saída da professora, ele disse que não
e lembrou, inclusive, que ela o havia apoiado na campanha para a
reitoria. O afastamento de Taisa da coordenadoria de fato foi assunto de
muitas reclamações levadas ao reitor. Na maioria das vezes, ele só
ouvia. Não há registro de nenhuma pressão dele contra ela nessas
conversas. Só se manifestou claramente quando informou ao grupo, tempos
depois, que assinara a exoneração. Taisa continua no quadro de
professores da UFSC. A polícia não conseguiu comprovar que o tal
documento tenha mesmo sido entregue ao reitor.
■ A
polícia ainda o acusou de receber “bolsa do EaD via Capes e via Fapeu”
(sigla de Fundação de Amparo à Pesquisa e Extensão Universitária). Ao
tomar o depoimento do reitor, ela nem sequer perguntou sobre esse
assunto. A questão — de que ele receberia duas bolsas irregularmente —
só aparece, por vias tortas, no momento em que o inquérito cita um
relatório da Advocacia-Geral da União recomendando “um maior
aprofundamento” das condições em que foram feitos “alguns dispêndios no
âmbito” do estudo a distância na UFSC. Um desses dispêndios, de 62 400
reais, foi repassado a Cancellier ao longo de seis anos, uma média de
10 000 reais por ano. E “há a possibilidade” de que se trate de “acúmulo
de recebimento de bolsas”, diz o relatório, sem se alongar.
A delegada Érika Marena. |
As cinco
razões que levaram o reitor à prisão — e, em seguida, resultaram em sua
morte — não ultrapassaram o terreno da suspeita mesmo depois de sete
meses de investigação. Cancellier, ao suicidar-se, deixou um bilhete
dizendo que sua morte fora decretada no momento em que o proibiram de
voltar à universidade, assim que saiu da prisão. Seu irmão, Acioli, que
mora em São José dos Campos, conta que Cancellier ficou sem chão devido à
acusação dos desvios. “Luiz Carlos tinha medo de sair à rua e alguém
lhe dizer: ‘O senhor não é o reitor dos 80 milhões?’ ”, recorda Acioli. A
prisão de Cancellier tornou-se um assunto nacional depois que seu
suicídio chamou a atenção para a Operação Ouvidos Moucos. Na época, a
delegada que chefiava a operação, Érika Marena, precisou prestar
explicações à própria corporação sobre sua conduta. Ex-coordenadora da
força-tarefa da Lava-Jato, ela foi submetida a uma sindicância da
própria PF, que concluiu que não houvera nenhum excesso. Em março, ela
foi transferida para Sergipe.
Muito barulho por pouco
Cinco
acusações infernizaram a vida de Cancellier nos dezoito dias entre sua
prisão e seu suicídio. A ordem de detenção, que incluiu uniforme de
presidiário e correntes, foi inteiramente baseada nelas. Sete meses
depois da tragédia, a PF não conseguiu coletar provas sólidas o
suficiente para endossar essas suspeitas. Abaixo, três versões
apresentadas pela polícia no inquérito e as incongruências de cada uma:
Publicado em VEJA de 2 de maio de 2018, edição nº 2580
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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