A semana passada foi
revelado um supremo horror, através de uma reportagem destacada do
Boletim dos Amigos do LSD, ui, perdão, do Diário de Notícias. O país, em
estado de choque por ter convivido impavidamente com realidade tão
ofensiva da dignidade humana, tomou conhecimento de situações mais
horríficas que o genocídio médio. Uma carnificina – declarou-se
apropriadamente.
Houve manifestação
contra a carnificina e tudo, com grande apoio do BE. O vereador Ricardo
Robles participou. Tinha ‘riot’ no nome – na verdade é assunto para
levar qualquer um a pegar em armas. Inteligentemente (aspas) escolheram
protestar na Almirante Reis, avenida que tudo aquilo que repugna a esta
boa malta reanimou de coma profundo.
(De seguida vou
aludir a alguns casos descritos na reportagem, pelo que, caso o leitor
esteja desconhecedor do seu conteúdo, sugiro que vá buscar meia tablete
de ansiolíticos para acompanhar a leitura da galeria de horrores. É bem
provável que necessite de lhe dar uso.)
Veja bem o leitor. Um
homem, por causa do fim do seu arrendamento anterior, teve de mudar de
casa do Saldanha para os Olivais. Do Saldanha para os Olivais. Quem
sobrevive a semelhante provação? Imaginam o balúrdio em psicoterapia que
esta pessoa, compreensivelmente traumatizada, irá gastar para o resto
da sua vida?
Ana Benavente,
senhora importante que até fez parte de um governo socialista, também
viu o arrendamento da sua casa terminado. E não é que teve de mudar para
uma casa, ok, ok, bem arranjada, mas que não é casa de ricos? Só um
sub-humano tolera viver bem no centro de Lisboa por mil euros numa casa
de classe média. E os mafarricos dos senhorios que pedem informações
para garantir que os inquilinos têm capacidade de pagar as rendas? Que
ganância. Como se não tivessem obrigação de disponibilizar a sua
propriedade gratuitamente.
Mais um caso. Uma
família que morou no Chiado a pagar 600€ até há pouco foi morar para
Campo de Ourique (zona nobre e central) a pagar 800€. (Já desmaiou?)
Bom, fico por aqui.
Temo pela saúde dos meus leitores. Em todo o caso, penso que todos
concordamos que estas situações são gravíssimas. Muito mais graves, por
exemplo, que a incúria e incompetência grosseira da resposta do governo
aos fogos florestais do ano passado, com o bonito número de 112 mortos,
cujo último relatório o DN tão suavemente noticiou.
Percebe-se. Qualquer
jornal tem direito a escolher entre reportar e destacar as carnificinas
verdadeiras ou as carnificinas inventadas.
É tudo tão ridículo
que nem se sabe se os ativistas de esquerda têm vontade deliberada de
fazer figuras apalhaçadas. Talvez para desviar a atenção (à conta de
tanta gargalhada) do (des)governo, com o justificado sururu do relatório
dos fogos de outubro ou o alinhamento tácito com Putin contra as
decisões da UE e do nosso mais antigo aliado. Ou se é a tradicional
aldrabice bloquista e para-bloquista de empolar um meio problema,
apresentando-o como quase crise de regime, para assim esmagar mais a
livre iniciativa e os rendimentos de muitas famílias que contam com as
rendas para o orçamento mensal – e, sempre, estatizar a sociedade.
Percebo que as
pessoas se afeiçoem às casas e lhes custe sair. Também ninguém gosta de
pagar mais pelo que dantes pagava muito pouco. Mas não espanta que os
inimigos da propriedade privada e da livre iniciativa provoquem
chavascal e manifestações por rendas de menos de mil euros em casas boas
em zonas recomendáveis.
Faço só alguns apontamentos.
Primeiro. Que
esquerda parvenue e de horizontes pequenos. Passei boa parte da minha
vida a atravessar Lisboa (no extremo norte da cidade) para ir
diariamente para o Lumiar, primeiro para o colégio, depois para o CUPAV,
muitas vezes para ir para casa de amigos ou namorar. Para que percam
todo o respeito por mim, declaro ainda que sempre tive amigos vivendo em
Benfica e Telheiras. Ou (é o descalabro) residentes na Portela de
Sacavém, bairro moda nos anos oitenta malgrado estar situado já no
concelho de Loures. Lisboa não é sequer uma cidade grande.
Segundo.
Aparentemente há quem de esquerda não saiba, mas nos subúrbios já vive
muita gente licenciada, de classe média, que trabalha em Lisboa, com
filhos e horários para cumprir. Alguns preferem. Gostam de ter mais
espaço, casas mais baratas (logo mais dinheiro para férias, por
exemplo), menor rebuliço, proximidade de praia, o que seja.
É delicioso perceber
que para alguma esquerda viver nos subúrbios (todos eles provavelmente
bairros de lata ou sucedâneos) é bom só para a arraia miúda, que a casta
superior dos funcionários público e da alegada intelectualidade tem de
viver nas zonas históricas lisboetas (com obras a cargo do proprietário e
rendas baratas, claro).
Por outro lado, há
também muito quem viva em Lisboa e trabalhe nos concelhos circundantes
(eu, por exemplo, tenho o escritório a vinte e tal quilómetros). Não é
nenhum drama.
Terceiro. Foi divertido ver a direita regionalista do twitter alinhar com este drama indizível alinhavado pela esquerda.
Quarto. As cidades
são realidades dinâmicas. É comum as zonas periféricas tornarem-se
interessantes e culturalmente vivas precisamente por, não estando em
voga e sendo mais baratas, viverem um influxo de sangue novo das pessoas
à procura de rendas mais baixas. De seguida valorizam.
Quinto. E termino.
Este clamor com as rendas caras em Lisboa é um retrato da nossa
esquerda. Paroquial – uma cidade pequena como Lisboa é demasiado grande
para eles. Sem recursos psicológicos para responder às realidades mais
simples da vida – ter de se deslocar uns tantos quilómetros é uma
provação debilitante. Alienada da realidade – não sabe que há vida além
do centro mais curto de Lisboa. Imobilista e reacionária – as dinâmicas
de mudança deixam-nos apavorados e congeminam sobretudo para
suprimi-las. Explica muita coisa.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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