Conrado Hübner Mendes
Folha
Pede-se a tribunais que produzam segurança jurídica e previsibilidade. Esse fim costuma ser entendido apenas como demanda de conteúdo: que pudéssemos estimar, com algum grau de certeza, à luz das decisões passadas da corte, o que decidirá em casos semelhantes no futuro. Não é um objetivo possível de realizar por completo, pois muitos casos, apesar de sua similaridade de superfície, suscitam variações interpretativas genuínas.
Ainda que frustre expectativas, é desejável que a jurisprudência tenha um grau de elasticidade. Mas existe uma faceta mais básica da segurança jurídica: a expectativa de que tomará uma decisão em tempo razoável ou sabido. Trata-se de previsibilidade de segunda ordem.
SEM CREDIBILIDADE – O Supremo Tribunal Federal, no entanto, não só tirou a credibilidade da noção de jurisprudência como também nos sonega a possibilidade de saber quando uma decisão será tomada. Em certos casos, não estamos seguros sequer de que haverá decisão, qualquer que ela seja.
Se o STF passasse a observar, de modo criterioso e transparente, “ritos, procedimentos e prazos”, como quis Lewandowski, já seria um gesto quase revolucionário.
Entretanto, a loteria de agenda, somada ao seu oceano de casos, prejudica a construção de uma esfera pública constitucional, de um espaço em que debates democráticos possam se desenvolver, que atores interessados possam mobilizar energia e recursos para participar. Esperam apenas que seus argumentos sejam respondidos e uma decisão seja tomada em tempo publicamente justificado.
COMPARAÇÕES – Vale a pena observar outras cortes no mundo. Ainda que a comparação tenha limites, pois cada tribunal tem seu próprio desenho, volume de casos e contexto, mostraria, por exemplo, que a discricionariedade com o tempo não é exclusividade do Supremo.
Nem todo tribunal tem a disciplina com o tempo que possuem a Suprema Corte dos Estados Unidos ou a Corte Constitucional da África do Sul. Como ambas decidem poucas dezenas de casos por ano, a tarefa fica menos difícil.
Se olharmos para as cortes espanhola ou mexicana, alemã ou argentina, indiana ou chilena, veremos um mapa muito plural de gestão do procedimento, com problemas particulares. Em nenhuma delas, porém, se consegue encontrar tamanha libertinagem de obstrução individual de ministros.
PERDA DO RESPEITO – Um bom observador do comportamento judicial aprende depressa que “cortes não fazem o que dizem e nem dizem o que fazem”. Pelo menos parte do tempo.
Essa máxima é ainda mais certeira quando aplicada a um tribunal de cúpula, que precisa administrar dinamites da democracia. A crônica constitucional só perde a inocência quando está apta a detectar a dissonância entre as palavras e os atos de instituição ainda tão obscura quanto o Judiciário.
Um bom observador do Supremo Tribunal Federal também aprende que o Supremo Tribunal Federal não existe. Pelo menos na maior parte do tempo. Tornou-se um tribunal de 11 bocas e 11 canetas dotadas de poder para, sozinhas, tomar decisões (ou não decisões) que geram efeitos irreversíveis.
Foi capturado – A crônica constitucional brasileira vem captando essa lição à medida que a cacofonia do STF fica mais escancarada, e seus custos sociais, mais palpáveis.
O tribunal foi capturado por ministros que superestimam sua capacidade de serem levados a sério e subestimam a fragilidade da corte. Decidem (ou deixam de decidir) o que querem, quando querem, sozinhos ou em plenário; falam o que querem e quando querem, não só nos autos e nas sessões públicas de julgamento mas também nos microfones de jornalistas.
Ausentam-se das sessões do tribunal sob pretextos pouco contestados (um congresso acadêmico ou casamento de amigo no exterior, uma honraria oferecida por câmara de vereadores de município remoto, a irritação com voto de colega etc.).
PODER DILUÍDO – Administram terrivelmente a dimensão simbólica (fonte de autoridade) e deixam esvair a dimensão material do poder do tribunal (a capacidade de ser obedecido). Um STF sem capital político pode ser desobedecido sem custos.
Que tenhamos perdido a reverência pelo STF é um ganho de maturidade política. Que estejamos perdendo o respeito é um perigo que o tribunal criou para si mesmo. Maquiavel sugeriu, em “O Príncipe”, que um governante não deve buscar ser amado, mas respeitado. Se não for respeitado, que ao menos não seja desprezado, sentimento político mais nocivo. Um governante torna-se desprezível quando é “inconstante, leviano, irresoluto”.
O conselho serve para as instituições democráticas, sobretudo tribunais constitucionais. O STF precisa de anti-heróis, não do contrário. Sua sobrevivência como instituição relevante tem a ver com isso.
ILUSIONISMO – Às vésperas dos 30 anos da Constituição de 1988, temos um tribunal constitucional desencontrado. O STF promete mais do que deve, entrega menos do que pode, disfarça o tanto quanto consegue.
Habituou-se à prática do ilusionismo e dela faz pouco caso. Criou uma espécie de zona franca da Constituição, onde reina a discricionariedade de conjuntura e aonde o Estado de Direito não chega.
E não chega por obra dos próprios ministros e ministras, que não promoveram um único aperfeiçoamento digno de nota na última década: nem na forma, nem no conteúdo; nem nos ritos, nem na ética institucional. Não sabem conjugar a primeira pessoa do plural. Mediocrizaram a tarefa de interpretação constitucional e a própria instituição, cujo status se evapora. Com ele vai a esperança de efetividade da Constituição, a mais avançada que já tivemos.
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Posted in Tribuna da Internet
Folha
Pede-se a tribunais que produzam segurança jurídica e previsibilidade. Esse fim costuma ser entendido apenas como demanda de conteúdo: que pudéssemos estimar, com algum grau de certeza, à luz das decisões passadas da corte, o que decidirá em casos semelhantes no futuro. Não é um objetivo possível de realizar por completo, pois muitos casos, apesar de sua similaridade de superfície, suscitam variações interpretativas genuínas.
Ainda que frustre expectativas, é desejável que a jurisprudência tenha um grau de elasticidade. Mas existe uma faceta mais básica da segurança jurídica: a expectativa de que tomará uma decisão em tempo razoável ou sabido. Trata-se de previsibilidade de segunda ordem.
SEM CREDIBILIDADE – O Supremo Tribunal Federal, no entanto, não só tirou a credibilidade da noção de jurisprudência como também nos sonega a possibilidade de saber quando uma decisão será tomada. Em certos casos, não estamos seguros sequer de que haverá decisão, qualquer que ela seja.
Se o STF passasse a observar, de modo criterioso e transparente, “ritos, procedimentos e prazos”, como quis Lewandowski, já seria um gesto quase revolucionário.
Entretanto, a loteria de agenda, somada ao seu oceano de casos, prejudica a construção de uma esfera pública constitucional, de um espaço em que debates democráticos possam se desenvolver, que atores interessados possam mobilizar energia e recursos para participar. Esperam apenas que seus argumentos sejam respondidos e uma decisão seja tomada em tempo publicamente justificado.
COMPARAÇÕES – Vale a pena observar outras cortes no mundo. Ainda que a comparação tenha limites, pois cada tribunal tem seu próprio desenho, volume de casos e contexto, mostraria, por exemplo, que a discricionariedade com o tempo não é exclusividade do Supremo.
Nem todo tribunal tem a disciplina com o tempo que possuem a Suprema Corte dos Estados Unidos ou a Corte Constitucional da África do Sul. Como ambas decidem poucas dezenas de casos por ano, a tarefa fica menos difícil.
Se olharmos para as cortes espanhola ou mexicana, alemã ou argentina, indiana ou chilena, veremos um mapa muito plural de gestão do procedimento, com problemas particulares. Em nenhuma delas, porém, se consegue encontrar tamanha libertinagem de obstrução individual de ministros.
PERDA DO RESPEITO – Um bom observador do comportamento judicial aprende depressa que “cortes não fazem o que dizem e nem dizem o que fazem”. Pelo menos parte do tempo.
Essa máxima é ainda mais certeira quando aplicada a um tribunal de cúpula, que precisa administrar dinamites da democracia. A crônica constitucional só perde a inocência quando está apta a detectar a dissonância entre as palavras e os atos de instituição ainda tão obscura quanto o Judiciário.
Um bom observador do Supremo Tribunal Federal também aprende que o Supremo Tribunal Federal não existe. Pelo menos na maior parte do tempo. Tornou-se um tribunal de 11 bocas e 11 canetas dotadas de poder para, sozinhas, tomar decisões (ou não decisões) que geram efeitos irreversíveis.
Foi capturado – A crônica constitucional brasileira vem captando essa lição à medida que a cacofonia do STF fica mais escancarada, e seus custos sociais, mais palpáveis.
O tribunal foi capturado por ministros que superestimam sua capacidade de serem levados a sério e subestimam a fragilidade da corte. Decidem (ou deixam de decidir) o que querem, quando querem, sozinhos ou em plenário; falam o que querem e quando querem, não só nos autos e nas sessões públicas de julgamento mas também nos microfones de jornalistas.
Ausentam-se das sessões do tribunal sob pretextos pouco contestados (um congresso acadêmico ou casamento de amigo no exterior, uma honraria oferecida por câmara de vereadores de município remoto, a irritação com voto de colega etc.).
PODER DILUÍDO – Administram terrivelmente a dimensão simbólica (fonte de autoridade) e deixam esvair a dimensão material do poder do tribunal (a capacidade de ser obedecido). Um STF sem capital político pode ser desobedecido sem custos.
Que tenhamos perdido a reverência pelo STF é um ganho de maturidade política. Que estejamos perdendo o respeito é um perigo que o tribunal criou para si mesmo. Maquiavel sugeriu, em “O Príncipe”, que um governante não deve buscar ser amado, mas respeitado. Se não for respeitado, que ao menos não seja desprezado, sentimento político mais nocivo. Um governante torna-se desprezível quando é “inconstante, leviano, irresoluto”.
O conselho serve para as instituições democráticas, sobretudo tribunais constitucionais. O STF precisa de anti-heróis, não do contrário. Sua sobrevivência como instituição relevante tem a ver com isso.
ILUSIONISMO – Às vésperas dos 30 anos da Constituição de 1988, temos um tribunal constitucional desencontrado. O STF promete mais do que deve, entrega menos do que pode, disfarça o tanto quanto consegue.
Habituou-se à prática do ilusionismo e dela faz pouco caso. Criou uma espécie de zona franca da Constituição, onde reina a discricionariedade de conjuntura e aonde o Estado de Direito não chega.
E não chega por obra dos próprios ministros e ministras, que não promoveram um único aperfeiçoamento digno de nota na última década: nem na forma, nem no conteúdo; nem nos ritos, nem na ética institucional. Não sabem conjugar a primeira pessoa do plural. Mediocrizaram a tarefa de interpretação constitucional e a própria instituição, cujo status se evapora. Com ele vai a esperança de efetividade da Constituição, a mais avançada que já tivemos.
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