Artigo de João Pereira Coutinho, publicado, sobre "a questão filosófica mais relevante do nosso tempo".
Bons apetites:
"Todo o canalha é
magro", dizia o filósofo Nelson Rodrigues. Não vou tão longe. Sou magro.
Mas entendo o espírito da frase: podemos confiar em pessoas que não
gostam de comer?
A minha experiência
não o recomenda: todos os canalhas que conheci na vida eram avessos aos
prazeres da mesa. Podiam ser magros, gordos ou meio-gordos. Havia neles
um esgar de enfado quando chegava a hora sagrada. Comiam por
sobrevivência, o que implicava um desinteresse letal pelo prato que
tinham à frente. Entre um bife ou um arroz de cabidela, preferiam sempre
o bife por ser mais rápido.
Foi esta triste
experiência que me levou a aplicar o "teste do comprimido" nas minhas
relações sociais. Para os leigos, trata-se da questão filosófica mais
relevante do nosso tempo e reza assim: confrontado com um comprimido que
substituísse todas as refeições do dia, o leitor entregava-se ao
fármaco?
Em caso afirmativo,
cuidado: há um psicopata dentro de si. Como havia em dezenas de
criaturas a quem apliquei o teste e que responderam com um sorriso de
alívio por nunca mais terem de deglutir. Fugi enquanto pude.
Pelo contrário:
pessoas que recusavam furiosamente o comprimido ficaram amigas para a
vida. E, em matéria feminina, podia escrever vários sonetos sobre as
mulheres que não dispensam os prazeres de Baco. Mas esta é uma revista
familiar e convém não abusar no conteúdo.
Conclusão: o mundo
não se divide entre pessoas de esquerda ou de direita. A ideologia que
interessa é outra: há pessoas que tomavam o comprimido e outras que o
recusavam. Pertenço ao último grupo. Consequências?
O Natal foi há quatro
dias e há dois que ando a chás de funcho. Gemendo, em posição
horizontal, tenho momentos febris em que vejo um comprimido a tentar-me
como se fosse um demónio frugal e abstémio. Tento combatê -lo com anjos
de todas as formas – o leitão da Bairrada é figura recorrente – mas às
vezes fraquejo.
Hoje, por exemplo, ao
ler a imprensa do dia, encontro um artigo do Daily Telegraph onde se
reproduz uma fotografia com o "prato ideal" da quadra natalícia se todas
as recomendações de saúde fossem seguidas.
Pondero. Lá temos 25
gramas de brócolos; 25 gramas de cenoura; 125 gramas de peru; três
pindéricas batatas cozidas; 1/20 de mince pie (uma espécie de tartezinha
de carne); 1/4 de enroladinho de salsicha; 1/4 de um copo de champanhe;
1 bala; 1 revólver. Minto. A bala e o revólver seriam um toque pessoal
para a sobremesa.
A três dias da
passagem do ano, rezo a São Funcho para que afaste de mim os maus
pensamentos e me devolva, intacto, à mesa do réveillon. Dieta, só nos
inícios de Janeiro. Que será abandonada, como manda a tradição, nos
finais do mesmo mês.
Partidos políticos?
Sempre fui contra o financiamento público dos mesmos. Razões de
salubridade ideológica e até de ética: se eu não professo os
ensinamentos do tio Karl, por que motivo devo sustentar o PCP e o Bloco?
Especialistas vários,
que estudaram política nas Selecções do Reader’s Digest, respondem-me:
sem partidos, não há democracia. Não sei em que experiências se baseiam
estes sábios. A única certeza empírica que podemos defender vai em
sentido diverso: a democracia deixou de existir quando partidos
marxistas-leninistas chegaram ao poder.
Os militantes e os
simpatizantes devem pagar as causas em que acreditam, por mais absurdas
ou aberrantes que elas sejam. Desde que exista um limite para a
generosidade dos privados: acreditar que a fiscalização resolve o
assunto é não conhecer o País em que estamos.
Felizmente, existe
agora uma razão suplementar para apoiar a minha causa: a forma como PCP,
Bloco, PS e PSD (mas não CDS e PAN) foram directamente ao bolso dos
contribuintes. Aconteceu nas vésperas de Natal, com o País a preparar a
consoada: a partir de agora, pagar IVA é só para otários.
E se o leitor
acredita que este assalto ao cofre público restringe o financiamento
privado, desengane-se: o tecto para estas doações, fixado em 630 mil
euros anuais, deixou de existir.
Por outras palavras:
quando a fome aperta, a maioria dos partidos com assento parlamentar não
perde tempo com disputas ideológicas. Público ou privado, todo o
dinheiro é democrático.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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