terça-feira, 2 de janeiro de 2018

A questão filosófica mais relevante do nosso século


Artigo de João Pereira Coutinho, publicado, sobre "a questão filosófica mais relevante do nosso tempo".
Bons apetites:


"Todo o canalha é magro", dizia o filósofo Nelson Rodrigues. Não vou tão longe. Sou magro. Mas entendo o espírito da frase: podemos confiar em pessoas que não gostam de comer? 

A minha experiência não o recomenda: todos os canalhas que conheci na vida eram avessos aos prazeres da mesa. Podiam ser magros, gordos ou meio-gordos. Havia neles um esgar de enfado quando chegava a hora sagrada. Comiam por sobrevivência, o que implicava um desinteresse letal pelo prato que tinham à frente. Entre um bife ou um arroz de cabidela, preferiam sempre o bife por ser mais rápido. 
Foi esta triste experiência que me levou a aplicar o "teste do comprimido" nas minhas relações sociais. Para os leigos, trata-se da questão filosófica mais relevante do nosso tempo e reza assim: confrontado com um comprimido que substituísse todas as refeições do dia, o leitor entregava-se ao fármaco? 

Em caso afirmativo, cuidado: há um psicopata dentro de si. Como havia em dezenas de criaturas a quem apliquei o teste e que responderam com um sorriso de alívio por nunca mais terem de deglutir. Fugi enquanto pude.

Pelo contrário: pessoas que recusavam furiosamente o comprimido ficaram amigas para a vida. E, em matéria feminina, podia escrever vários sonetos sobre as mulheres que não dispensam os prazeres de Baco. Mas esta é uma revista familiar e convém não abusar no conteúdo.

Conclusão: o mundo não se divide entre pessoas de esquerda ou de direita. A ideologia que interessa é outra: há pessoas que tomavam o comprimido e outras que o recusavam. Pertenço ao último grupo. Consequências?

O Natal foi há quatro dias e há dois que ando a chás de funcho. Gemendo, em posição horizontal, tenho momentos febris em que vejo um comprimido a tentar-me como se fosse um demónio frugal e abstémio. Tento combatê -lo com anjos de todas as formas – o leitão da Bairrada é figura recorrente – mas às vezes fraquejo. 

Hoje, por exemplo, ao ler a imprensa do dia, encontro um artigo do Daily Telegraph onde se reproduz uma fotografia com o "prato ideal" da quadra natalícia se todas as recomendações de saúde fossem seguidas. 

Pondero. Lá temos 25 gramas de brócolos; 25 gramas de cenoura; 125 gramas de peru; três pindéricas batatas cozidas; 1/20 de mince pie (uma espécie de tartezinha de carne); 1/4 de enroladinho de salsicha; 1/4 de um copo de champanhe; 1 bala; 1 revólver. Minto. A bala e o revólver seriam um toque pessoal para a sobremesa.

A três dias da passagem do ano, rezo a São Funcho para que afaste de mim os maus pensamentos e me devolva, intacto, à mesa do réveillon. Dieta, só nos inícios de Janeiro. Que será abandonada, como manda a tradição, nos finais do mesmo mês.

Partidos políticos? Sempre fui contra o financiamento público dos mesmos. Razões de salubridade ideológica e até de ética: se eu não professo os ensinamentos do tio Karl, por que motivo devo sustentar o PCP e o Bloco?

Especialistas vários, que estudaram política nas Selecções do Reader’s Digest, respondem-me: sem partidos, não há democracia. Não sei em que experiências se baseiam estes sábios. A única certeza empírica que podemos defender vai em sentido diverso: a democracia deixou de existir quando partidos marxistas-leninistas chegaram ao poder. 

Os militantes e os simpatizantes devem pagar as causas em que acreditam, por mais absurdas ou aberrantes que elas sejam. Desde que exista um limite para a generosidade dos privados: acreditar que a fiscalização resolve o assunto é não conhecer o País em que estamos. 

Felizmente, existe agora uma razão suplementar para apoiar a minha causa: a forma como PCP, Bloco, PS e PSD (mas não CDS e PAN) foram directamente ao bolso dos contribuintes. Aconteceu nas vésperas de Natal, com o País a preparar a consoada: a partir de agora, pagar IVA é só para otários. 

E se o leitor acredita que este assalto ao cofre público restringe o financiamento privado, desengane-se: o tecto para estas doações, fixado em 630 mil euros anuais, deixou de existir. 

Por outras palavras: quando a fome aperta, a maioria dos partidos com assento parlamentar não perde tempo com disputas ideológicas. Público ou privado, todo o dinheiro é democrático.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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