sábado, 30 de dezembro de 2017

Atacar os transgênicos não é apenas anticientífico, é imoral.


Reitor de universidade norte-americana detentora de três prêmios mundiais na área da alimentação na última década critica o discurso ideológico contra os OGM, organismos geneticamente modificados. Matéria publicada pelo Washington Post e traduzida pela Gazeta do Povo:


Das várias alegações anticientíficas que bagunçam os debates atualmente, nada é tão escancarado como a campanha contra a moderna tecnologia agrícola, mais especificamente contra o uso de ferramentas moleculares para criar organismos geneticamente modificados (OGMs).

Depois de dois bilhões de hectares cultivados e trilhões de refeições consumidas, não existem estudos de credibilidade contraditórios, nenhum argumento sobre a validade de modelos matemáticos, nenhuma perturbação de ecossistema ou qualquer efeito adverso para a saúde humana ou mesmo problemas digestivos provocados pelos transgênicos.

Mesmo assim, uma campanha endinheirada e orquestrada, tão persistente quanto sem embasamento, vem persuadindo uma elevada parcela de americanos e europeus a evitar os produtos com OGMs e a pagar preços “premium” por alimentos “livres de transgênicos” ou “orgânicos” que, em vários casos, são menos seguros e menos nutritivos.

Ainda bem que os fabricantes de pasta de dente do passado não se acovardaram tão facilmente; ou então os tubos teriam a mensagem “não contém flúor” e todos estamparíamos sorrisos muito mais cariados.

Esse é o tipo de tolice que as sociedades ricas podem ser dar ao luxo de cometer. Mas as pessoas tentam infligir suas superstições sobre os pobres e famintos do planeta, os custos deixam de ser toleráveis para virar perigosos, e o debate sai do campo da ciência para a moral.

Maior desafio

Do campus ao Congresso, é comum hoje se ouvir falar em termos de “grandes desafios”. Nenhum desafio, no entanto, é maior do que o de alimentar 9 bilhões de pessoas ou mais com quem dividiremos o planeta nas próximas décadas.

Claro, essas pessoas não deveriam vir à existência. Poucas décadas atrás, “experts” estavam ganhando prêmios como supostos gênios por argumentarem que “a batalha para alimentar a humanidade tinha terminado”, prevendo que centenas de milhões iriam morrer e que não havia nada que pudesse ser feito. (Pergunta: se isso é genialidade, o que seria ignorância? Não deveriam os doadores do prêmio pedir o dinheiro de volta?)

Em vez de fome em massa e declínio populacional, os anos seguintes trouxeram os maiores avanços registrados na história da humanidade em termos de qualidade de vida, segurança alimentar, redução da pobreza e expectativa de vida.

É preciso dar o devido peso e crédito a Deng Xiaoping por libertar o espírito capitalista na China, mas foram figuras como o fitopatologista Norman Borlaug e o biólogo Orville Vogel que fizeram a Revolução Verde, movida pela moderna ciência das plantas, e que salvaram o maior número de vidas e aplainaram o caminho para o próximo grande desafio.

Atualmente, os sucessores daqueles cientistas fazem surgir um novo conjunto de milagres na produção vegetal e na criação animal que podem não só alimentar bilhões de pessoas, mas conseguem fazê-lo de uma forma muito mais sustentável e amigável ao meio ambiente.

E apesar dessas novas tecnologias serem realmente impressionantes, no fundo são apenas refinamentos de técnicas brutas que vinham sendo utilizadas por vários séculos.

Morrer de fome

Devido à natureza enfática ou “estabelecida” da ciência, seria de se esperar uma união de esforços para espalhar essas tecnologias que salvam vidas e poupam o planeta, fazendo-as chegar o mais rápido possível às nações pobres que têm tanta urgência. Em vez disso, ouvimos exigências para que os países em desenvolvimento renunciem aos produtos que lhes oferecem a melhor esperança de se unir ao mundo bem alimentado e afluente. Nas palavras de um crédulo ex-presidente da Zâmbia, “preferimos morrer de fome do que ingerir algo tóxico”. Maria Antonieta não faria declaração melhor.

Não é que a comunidade científica não compreenda a gravidade do problema ou as distorções da turma do contra. Mas gente demais mantém o que sabe para si mesma ou, quando se envolve, segue as regras do Marquês de Queensbury diante de uma briga de rua. Dá para entender este comportamento reticente quando se está diante de um agressivo e egoísta lobby antitransgênico, indiferente aos fatos e rápido em perpetrar ataques ad hominem (à pessoa, e não ao argumento).

Se você é um acadêmico, você pode dizer que, cedo ou tarde, a ciência prevalecerá. Se é do mundo do comércio, você pode justificar o silêncio (ou cumplicidade) dizendo que não está no negócio para discutir com os fregueses. Se você é um burocrata do setor de regulações, está preocupado em não ser crucificado por algum erro, evitando se arriscar porque, afinal, ninguém será responsabilizado pelo milagre que não chegou ao mercado.

É hora de mover o argumento para um novo patamar. Para os ricos e bem-alimentados, negar aos africanos, asiáticos e alguns sul-americanos os benefícios da moderna tecnologia não é meramente anticientífico. É cruel, é mesquinho, é desumano – e deve ser confrontado por razões morais que qualquer cidadão possa entender, inclusive aqueles enganados a comer salgadinho livre de transgênicos.

Viaje à África com qualquer um dos três pesquisadores da Universidade de Purdue que ganharam o World Food Prize (equivalente ao prêmio Nobel da agricultura) nos últimos anos, e você não ouvirá em nenhum momento a conversa dominada pelos manifestantes antitransgênicos. Lá, de onde virá mais de metade do aumento populacional, consumidores e agricultores, indistintamente, estão ansiosos para compartilhar os avanços que salvam e melhoram as condições de vida – e que apenas a ciência moderna pode trazer. Os esforços para convencê-los do contrário, ou simplesmente para lhes bloquear o acesso à próxima geração de avanços, são pior do que anticientíficos. São imorais.

* Mitchel E. Daniels é reitor da Universidade de Purdue e ex-governador do estado americano de Indiana.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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