terça-feira, 3 de outubro de 2017

Um minuto de silêncio


"A vice-presidente de negócios da CBS, Hayley Geftman-Gold, foi demitida após dizer em seu perfil do Facebook que “não estava nem aí” para os mortos porque fãs de música country normalmente são republicanos. Para Hayley e, infelizmente, para uma parte significativa da imprensa americana atual, se você não é de esquerda você não é gente, e mesmo na morte não merece a menor empatia". Ana Paula Henkel, em texto publicado no Estadão, sobre o massacre de Las Vegas:


Meu coração ainda aperta quando lembro do estádio do Atlético Nacional da Colômbia lotado para homenagear os 71 mortos da tragédia com o vôo da Chapecoense. Setenta famílias devastadas pela irresponsabilidade humana, por um avião que ficou sem combustível em pleno vôo. Homicídio culposo por negligência e imprudência, imperdoável e inaceitável. Sentimentos inevitáveis quando as mortes são evitáveis.

Chorei quando vi Medellín cantando “vamos, vamos Chape”, chorei quando Galvão Bueno narrou com toda emoção o gol imaginário de Ananias para sua esposa Bárbara, realizando o sonho do jogador que se foi na queda do avião. A humanidade se renova nestes pequenos gestos. Galvão não trouxe Ananias de volta, mas deu um pouco de conforto para uma jovem viúva no seu momento mais difícil e lembrou ao mundo que solidariedade e bondade também operam milagres.

Como atleta, perdi a conta de quantos minutos de silêncio já participei. Naquele momento, todos são convidados a esquecer as diferenças e divisões, superar a mesquinhez das nossas imperfeições e pecados, das disputas e preocupações do dia, para elevar o pensamento e o espírito. Somos chamados a entrar em sintonia como uma grande família que perde junta alguns dos seus entes mais queridos. Somos todos, ao menos por um minuto, humanos.
Enquanto escrevo, mais de cinquenta famílias choram seus mortos num episódio devastador, como duas jovens que moravam a menos de cinco quilômetros da minha casa. Rachel Parker era policial, Sandy Casey era professora e cuidava de crianças especiais. Duas mulheres jovens que moravam na vizinhança, que frequentavam os mesmos lugares que eu e que foram celebrar a vida num show em Las Vegas e que agora voltarão em caixas de madeira pra casa. Não há nada, nunca, que vá curar a dor de quem deixaram aqui em Manhattan Beach.

Os corpos das vítimas ainda sangravam ao serem envolvidos em plásticos pretos quando políticos, ativistas e jornalistas oportunistas, insensíveis à dor da tragédia, voavam para as redes sociais salivando e gritando suas agendas ideológicas. As motivações do atirador, mesmo dois dias depois do atentado, ainda não estão claras, o que se sabia naqueles instantes logo após os disparos é que mais de cinquenta inocentes, pessoas comuns como eu e você, foram brutalmente assassinadas. A política pode e deve esperar.

A vice-presidente de negócios da CBS, Hayley Geftman-Gold, foi demitida após dizer em seu perfil do Facebook que “não estava nem aí” para os mortos porque fãs de música country normalmente são republicanos. Para Hayley e, infelizmente, para uma parte significativa da imprensa americana atual, se você não é de esquerda você não é gente, e mesmo na morte não merece a menor empatia.

Desconheço as filiações partidárias de Rachel Parker e Sandy Casey, mas sei que moro numa das regiões mais fiéis ao Partido Democrata do país. Mesmo que Rachel e Sandy fossem republicanas, o que é improvável, que diferença faz? Que diferença faz se eram contra ou a favor da Segunda Emenda da Constituição Americana? Se as famílias de Rachel e Sandy choram a morte das suas filhas, os parentes e amigos de Hayley Geftman-Gold da CBS têm motivos para ficar de luto também. Covardes morrem várias vezes antes da sua morte, como disse o Julio César de Shakespeare.

Se não pudermos concentrar nosso respeito nas vítimas, nos mortos e feridos e nos seus familiares durante tragédias, se não pudermos vencer a pulsão de empurrar narrativas quando precisamos nos unir no abraço às vítimas, falhamos como sociedade. Se os mais destacados membros da população, estes com acesso privilegiado aos canais de comunicação de massa, não amolecem seus corações quando vidas se esvaem em sangue de modo tão brutal e estúpido, é preciso repensar para que tipo de pessoas entregamos estes microfones e canetas.

Depois de dias de infâmia e desrespeito de atletas aos veteranos que perderam suas vidas na defesa da pátria em tantos conflitos com atitudes desrespeitosas aos símbolos do país, a América merece a chance de enterrar seus mortos de Las Vegas com a devida reverência ao luto dos que ficaram. Não é hora de gritar, mas de levar conforto, mesmo nas inóspidas terras das redes sociais. Nestas horas, por que não lembrar de São Francisco e levar um pouco de amor onde há ódio e um pouco de luz onde há trevas? Em um mundo tão polarizado como o atual, é na morte que deveríamos nos unir e tentar renascer um pouco melhores.

Ninguém é obrigado a ajudar, ser fraterno ou amável, mas todos podem silenciar quando não têm nada de bom para oferecer. A bondade pode não estar ao alcance de todos, mas o silêncio misericordioso e muitas vezes precioso, está. São quase sessenta famílias destroçadas por um ato que não tem, e jamais terá, explicação, independente da sua ideologia política ou partidária.

Ativistas e militantes de qualquer esfera terão a vida toda para gritar suas palavras de ordem e desordem, são livres para isso. Em dias de luto e dor, ainda cabe pedir e respeitar um minuto de silêncio.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

Nenhum comentário:

Postar um comentário