Juiz nenhum pode, em
nome de suposta convicção pessoal, ignorar a legislação vigente e criar
outra. A advertência vale para os magistrados da Justiça do Trabalho,
que, com suas recomendações, instalam a insegurança jurídica. Texto de
Carlos Alberto Sardenberg, publicado pelo jornal O Globo:
A Associação Nacional
dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) é uma entidade de
classe, que age como um sindicato de juízes. Já é meio esquisito, mas
como a legislação não é clara, a categoria se associou e defende
fortemente seus interesses específicos. Muito mais esquisito, porém, é
que essa associação se assuma como um tribunal constitucional,
declarando que não aceita a reforma trabalhista e recomendando a seus
associados que não a apliquem.
A reforma foi
aprovada depois de um longo debate, seguindo todas as normas legais.
Votada na Câmara dos Deputados e no Senado, sancionada pelo presidente
Temer, a nova legislação vai estar em vigor a partir de 11 de novembro
próximo.
Ocorre que a Anamatra
convocou uma jornada reunindo juízes, procuradores e auditores fiscais
do trabalho, na qual aprovou 125 enunciados para, diz, orientar as
decisões dos magistrados. Na verdade, os enunciados rejeitam todos os
pontos principais da reforma e também da Lei de Terceirização. Para a
entidade, são inconstitucionais, e os juízes do trabalho devem decidir
os casos específicos com base nessa orientação, e não no texto da lei.
Eis a insegurança
jurídica. Uma empresa vai contratar um funcionário no dia 12 de
novembro. Qual legislação deve considerar, a aprovada no Congresso e
sancionada pelo presidente ou os enunciados da Anamatra?
Dirão: a reforma tem
força de lei; os enunciados, não. Mas o sindicato dos juízes e seus
associados entendem que os magistrados não são obrigados a seguir a
“literalidade” da lei. Ou seja, que estão livres para interpretá-la
conforme sua “livre convicção”, para buscar a “vontade concreta da lei” a
partir das “balizas constitucionais e legais”.
Trata-se de uma
confusão de palavras e conceitos. É claro que o juiz interpreta. A lei é
regra geral, o juiz decide casos específicos da vida real, de modo que
precisa mesmo interpretar e dizer qual lei e como se aplica em cada
situação. Todo mundo está de acordo com isso.
O que o juiz não pode
fazer é, supostamente em nome de sua convicção pessoal, simplesmente
ignorar a legislação vigente e seguir uma outra, recomendada pela sua
entidade de classe. É exatamente o que pretende a Anamatra.
Alega que a reforma
trabalhista é inconstitucional. Mas existe uma corte para decidir isso —
e é uma só, o Supremo Tribunal Federal. É lá, e somente lá, que a
Anamatra deveria apresentar seu caso. E enquanto o STF não decide, vale a
reforma aprovada pelo Congresso. Se não for assim, para que serviria o
Congresso Nacional, o poder legislador? A regra é a independência dos
poderes.
Há uma questão maior
por trás desse debate: trata-se de um tipo de ideologia que domina boa
parte do Judiciário brasileiro. Pode ser assim resumida: o juiz não está
lá para aplicar a lei, mas para fazer justiça.
Pode parecer muito
bonito, mas a ideia é falsa. A verdade é o contrário: fazer justiça é
fazer respeitar a lei e os contratos. Não há como escapar disso sem
gerar uma enorme insegurança, uma ampla fonte de injustiças e de
autoritarismo.
Não faz muito tempo,
critiquei aqui, até com ironia, uma decisão do STJ que impedia os
lojistas de conceder desconto para pagamento à vista. Desembargadores me
ligaram para dizer que também achavam a decisão ridícula, mas era o que
determinava a lei — que, afinal, foi alterada.
Se a decisão não for
com base na lei, será necessariamente subjetiva e baseada na ideologia
do juiz. O contrário da civilização, do estado do direito, que é o
império da lei.
Até a Anamatra sabe
disso. Seus enunciados sustentam que não se deve seguir a “literalidade”
da lei. Na verdade, recomendam que os juízes não sigam a “literalidade”
de uma determinada lei — a reforma recém-aprovada — e que sigam outras
leis, as anteriores. Estão se dando o direito de dizer qual lei e qual
não vale.
Aí não pode. Essa é
uma escolha, sobre qual será lei, é prerrogativa política do Parlamento,
o poder popular, Imaginem que um ministro da Suprema Corte diga isso:
não vou seguir a atual Constituição, vou seguir uma outra que acho mais
justa. Seria caso de impeachment, não é mesmo?
A Anamatra não está causando apenas insegurança jurídica. É muito mais grave.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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