Discorrendo sobre
Portugal, Alberto Gonçalves relembra Cavaco Silva, que lhe dá certa
saudade diante da mediocridade reinante. Aliás, vivemos 14 anos de
desgraceira por aqui também - e a conta a pagar não será pequena:
A propósito do Grande
Escândalo da semana passada, perguntei aos meus botões porque é que os
novos censores se ofenderam tanto com os livrinhos “sexistas” da Porto
Editora e não se ofendem com milhares de obras literárias de facto,
facilmente condenáveis por “sexismo”, “racismo”, “xenofobia” “homofobia”
ou qualquer outra calamidade equivalente. Dito de maneira diferente: a
que título, em Portugal, os novos censores ignoram as inúmeras
“discriminações” em Defoe ou Eliot, Twain ou Nabokov? Sensatos, os meus
botões responderam: porque os novos censores nunca leram nada assim, e
se leram não perceberam.
Na verdade, os novos
censores exibiram vasta incapacidade em perceber os exactos livrinhos da
“polémica”, conjuntos de exercícios e passatempos destinados a
criancinhas de tenra idade. Conforme Ricardo Araújo Pereira mostrou no
Governo Sombra, as edições “para o menino” e “para a menina” são
rigorosamente iguais, excepto pelas ilustrações, assinadas por autoras
diferentes. No meio das semelhanças, os novos censores lá conseguiram
descobrir o rabisco de um labirinto cuja exigência era aparentemente
maior na versão masculina do que na feminina. Alguns dos novos censores
ainda estão a tentar sair de ambos.
Não estamos apenas no
domínio da infantilidade: a coisa já roça a perturbação mental. Ao
longo dos séculos, os partidários das repressões raramente se
distinguiram pela inteligência. Os novos censores distinguem-se pela
assustadora falta dela. Essa deficiência impele-os a farejar bibliotecas
de creches, à cata de obras blasfemas para alimentar fogueiras. Ia
acrescentar que é melhor isso do que andarem na droga. Mas a droga
talvez envergonhe menos.
Naturalmente, o
Grande Escândalo da semana passada não está totalmente desligado do
Grande Escândalo desta: a “aula” de Cavaco Silva numa qualquer pândega
do PSD. Cavaco falou e resmas de nulidades – grosso modo, as mesmas que
exigiram e aplaudiram a recolha dos livrinhos – atropelaram-se para
condenar o facto. Por definição, as nulidades não deviam importar.
Cavaco importa um bocadinho e, hoje, não só um bocadinho. Durante os
trinta anos em que influenciou o país, nunca me inspirou particular
simpatia ou antipatia, e frequentemente dei por mim a tentar escolher se
lhe preferia as óbvias virtudes ou se me repeliam as diversas
limitações. Há dias, porém, Cavaco falou e não evitei certa saudade.
Não é saudade do
homem. É saudade de alguém, ou de alguma coisa, que não pertença à
desgraceira que hoje temos, por ironia e fraqueza consagrada no final da
presidência anterior. E o principal mérito de Cavaco consistiu
justamente em não “pertencer” – embora pertencesse mais do que ele
gostaria e do que os seus devotos julgam. Não sendo o herói imaculado
que estes imaginam, a comparação de Cavaco com os destroços vigentes
eleva-o ao céu. Apesar dos obstáculos, próprios e alheios, acabou por se
assemelhar a um estadista, emprestar à sua época uns vestígios de
razoabilidade e, ocasionalmente, ajudar a fingir que isto é um lugar
frequentável. As espantosas criaturas que, oficial e oficiosamente,
agora distribuem ordens não merecem um adjectivo que caiba num jornal
familiar. E os ansiosos escusam de vir lembrar os erros que Cavaco
cometeu e os corruptos que Cavaco promoveu: por um lado, a incompetência
e a corrupção são essenciais à política; por outro, não me interessa (e
não preciso) argumentar que a “nomenclatura” actual é especialmente
incompetente ou corrupta. Ou demasiado matarruana até para os padrões
caseiros.
O nosso problema é a
“nomenclatura” ser – desculpem o jargão técnico – doida varrida. No
último ano e meio, sob as “notícias” amestradas do “milagre económico” e
uma oposição muda ou cúmplice, desatou-se a transformar o país
remendado e periférico da praxe num imenso seminário de actividades
circenses. Deixo a cada um a tarefa de decidir quem são os malabaristas e
os palhaços. Certo é que, em circunstâncias “normais”, o episódio dos
livrinhos da Porto Editora não passaria de um interlúdio cómico. Nas
circunstâncias presentes, é uma peça trágica, repleta de personagens
inverosímeis e unidimensionais: os que, no ócio, inventaram um pretexto
para se sentirem ultrajados; os que, nos “media” e nas “redes”,
amplificaram o ultraje; os que, no governo, proibiram o ultraje. É claro
que, no tempo de Cavaco, tais personagens já se contorciam por aí. A
diferença é que, no tempo depois de Cavaco, as personagens mandam, e
mandam sozinhas. Vale que o caldo de toleima, prepotência, fanatismo,
ignorância e poder absoluto costuma correr bem, e tão bem para as
meninas quanto para os meninos.
Nota de rodapé
Para quem não tenha
habitado o planeta durante o último século, o caso da Autoeuropa é uma
pertinente aula prática sobre os propósitos, os métodos e as
consequências do socialismo “científico”. Há uma empresa multinacional
relevante para as dimensões da economia nacional, viável há muitos anos e
com um apreciável currículo de razoabilidade nas relações entre
empregadores e empregados. Há uma proposta, ou decisão, para alargar o
expediente aos sábados, com troca de folgas e aumento desproporcionado
(no bom sentido) dos salários. Há um bando de preguiçosos daninhos, de
facto serventuários do PCP, que toma aquilo de assalto e promove uma
greve inédita. Há uma enxurrada de referências cínicas à “luta” e aos
“direitos”, aos “piquetes” e à “paralisação”. Há a suspeita de que, não
tarda, os donos da coisa cansam-se desta Venezuela à beira-Sado e vão
produzir carrinhos em paragens menos folclóricas. Há a certeza de que,
logo que os trabalhadores fiquem sem trabalho nem dinheiro (mas com sete
dias livres por semana), a culpa será do capitalismo selvagem. Há
esperança de que, sobre os escombros e a miséria, o PCP decrete a
vitória das forças revolucionárias. Não há esperança de que isto sirva
de lição. (Observador).
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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