terça-feira, 30 de maio de 2017

O direito ao silêncio e o direito de mentir


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Charge do Alpino (Yahoo Notícias)
Fernando Orotavo Neto
A 5ª Emenda (Fifth Amendment) à Constituição dos Estados Unidos da América do Norte, que integra a Declaração de Direitos (Bill of Rights), garante o direito que qualquer acusado possui de não se autoincriminar ou de ser compelido a testemunhar contra si mesmo (“no person shall be compelled to be a witness against himself”).
É célebre, na jurisprudência norte-americana, o caso Miranda vs. Arizona (384 US 436, 1966), em que a Suprema Corte anulou a confissão redigida por Ernesto Miranda, preso e acusado pelo departamento de polícia de Phoenix de sequestrar e estuprar uma mulher de dezoito anos. O Juiz Warren, que emitiu o parecer do tribunal, afirmou que a condenação era ilegal, pois “a pessoa sob custódia deve, antes do interrogatório, ser claramente informada de que tem o direito de permanecer em silêncio, e que qualquer coisa que ele disser será usado contra  ele no tribunal; deve ser claramente informado de que tem o direito de consultar um advogado e de ter o advogado consigo durante o interrogatório e que, se for indigente, será nomeado um advogado para o representar”.
REGRA UNIVERSAL – Hoje em dia, esta fórmula, que ficou conhecida como “a advertência de Miranda” (Miranda warning ou Miranda rights), pode ser vista e ouvida em qualquer filme policial de Holywood.
Na Alemanha, o direito ao silêncio ganhou sua extensão máxima, constituindo dever do Estado respeitar e proteger o indivíduo contra eventuais exposições a ofensas e humilhações. Com efeito, em comentários ao art. 1º da Constituição alemã, Günther Dürig afirma que a submissão do homem a um processo judicial indefinido e sua degradação como objeto do processo estatal atenta contra o princípio da proteção judicial efetiva (rechtliches Gehör) e fere o princípio da dignidade humana [“Eine Auslieferung des Menschen an ein staatliches Verfahren und eine Degradierung zum Objekt dieses Verfahrens wäre die Verweigerung des rechtlichen Gehörs.”] (MAUNZ- DÜRIG, Grundgesetz Kommentar, Band I, München, Verlag C.H.Beck, 1990, 1/18).
NA CONSTITUIÇÃO – No Brasil, o direito do acusado ao silêncio, ou de permanecer calado, possui berço constitucional e endereço certo, expresso no comando normativo do art. 5º, LXIII, da Carta da República. Mas não é só nele. O direito à não autoincriminação, que subjaz ao de permanecer calado, constitui feição objetiva de princípios constitucionais da mais alta relevância jurídica, dentre os quais o da dignidade da pessoa humana (CR, art. 1º, III), do devido processo legal (LIV), da ampla defesa (LV) e da presunção de inocência (LVII); todos fundamentais ao Estado Democrático de Direito (CF, preâmbulo).
Tão ostensivamente importante se afigura o direito de o acusado permanecer calado que o parágrafo único do art. 186 do Código de Processo Penal, com redação dada pela Lei n. 10.792, de 1º de dezembro de 2003, dispõe que o silêncio não importará em confissão e não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.
Entretanto, uma coisa é permanecer silente; outra, bem diferente, é mentir. A meu ver, o acusado tem todo o direito de permanecer calado, mas, se decidir falar, deve dizer a verdade.
NADA DE MENTIRAS – O princípio insculpido no brocardo latino “nemo tenutur se degetere’ (ninguém é obrigado a se descobrir) não existe paracoonestar mentiras, senão para evitar a autoincriminação. E aí está o seu limite; pois até mesmo o amor, a maior das virtudes, possui limites (ou alguém acredita que é justo matar por amor?).
O processo judicial ou administrativo deve ser eminentemente ético, e, exatamente por isso, por que através dele se busca a justiça verdadeira, nua e inteira, seja material ou formal, é que não pode qualquer julgamento que se pretenda justo (“fair trial”)  comprazer-se com a mentira. Eventual autorização que se pudesse outorgar ao acusado para mentir contradiz a própria finalidade do processo como meio ou método de o Estado exercer a jurisdição (de “jurisdictum”, dizer o direito), uma vez que a nobre atividade judicante deve velar, primacialmente, pela moralidade, sob pena de a entrega da prestação jurisdicional descambar para a patologia e configurar verdadeira “contradictio in terminis” (contradição entre termos); pois justiça e mentira são conceitos que, antes de mais nada, se repelem e reprimem, pela clara incompatibilidade ontológica existente entre ambos.
Tanto a Constituição quanto as leis infraconstitucionais deixam claro que a moralidade e a ética devem reger o processo judicial ou administrativo, e não a mentira. É assim quando a Constituição garante a imparcialidade do juiz (CF, art. 5, LIII) ou mesmo quando declara inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos (LVI). É, igualmente, assim, quando a lei penal tipifica como crime a conduta praticada por uma pessoa que se atribui falsa identidade perante autoridade policial, para encobrir maus antecedentes (CP, art. 307); ou quando um indivíduo declara ter praticado um crime que não cometeu, para inocentar o verdadeiro criminoso (CP, art. 341).
A meu sentir, calar-se, pode; mentir não. O acusado silente exerce o direito natural de não se incriminar; já o mentiroso pratica ato atentatório à dignidade da justiça e conspurca a respeitabilidade e a integridade da função pública do processo, pois, como dizia Ulpiano, os preceitos fundamentais que norteiam toda a ciência do direito, na incessante busca pela justiça, consistem em: viver honestamente, não prejudicar a outrem e dar a cada um o que é seu (“iuris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere”); condutas estas manifestamente incompatíveis com a mentira, em todas as suas formas.
        (Fernando Orotavo Neto é advogado, professor e jurista)
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