Paulo Tunhas escreve, no Observador,
sobre a frieza do sheik Munir, da Mesquita Central de Lisboa, diante do
atentado de Manchester. Ele "exigiu, sem se referir sequer às vítimas,
reciprocidade no respeito. E as alusões aos crimes reais foram
substituídas pela abstracta menção ao medo". De fato, é de arrepiar:
O Sheik
David Munir, Imã da Mesquita Central de Lisboa, concedeu um depoimento à
Rádio Renascença esta terça-feira, no dia seguinte ao atentado de
Manchester em que Salman Abedi se fez explodir à saída de um concerto
pop, matando 22 pessoas, entre as quais crianças e adolescentes, e
ferindo 64, várias delas em estado gravíssimo. Raras vezes um depoimento
deste tipo me provocou um sentimento de irrealidade e de desconforto
como as palavras do Sheik Munir. Não que o Sheik Munir tivesse feito
qualquer apologia do atentado, muito longe disso. Pura e simplesmente,
havia ali uma distância em relação à coisa e uma generalidade e
abstracção dos propósitos que gelava a espinha.
Vejamos o
que disse o Sheik Munir, seguindo-o passo a passo. Em primeiro lugar,
que a religião dele o obriga a respeitar os outros, tal como os outros
devem aprender a respeitar os muçulmanos. É claro, inteiramente de
acordo. Mas a introdução da exigência de reciprocidade no dia seguinte a
este último atentado é, no mínimo, desajeitada. É como se não houvesse
razão para qualquer mal-estar particular e o contexto fosse
absolutamente normal.
Este
mesmo aspecto é sublinhado por uma referência ao Papa Francisco. O Papa
Francisco tem feito muito pelo respeito pelos muçulmanos, e é por isso
um exemplo para muitos líderes religiosos e políticos. Mais uma vez, a
exigência do respeito pelos muçulmanos. A quente, o olhar está já muito
longe das vítimas, não se demora nelas um só segundo, e centrado nas
exigências da comunidade própria.
Este
auto-centramento completa-se, como seria de esperar, por uma crítica aos
não-muçulmanos. Houve sempre pessoas que viram o Islão de uma forma
negativa, como uma religião do terror. A exigência da reciprocidade
desdobra-se assim, logo no dia consecutivo ao atentado, na crítica aos
preconceitos alheios. Sem, repito, sequer umas palavrinhas prévias onde
se exprima qualquer piedade para com as vítimas.
Neste
momento, o Sheik Munir, reflectindo sobre as origens do tal preconceito,
concede que alguns muçulmanos contribuíram para que isso acontecesse.
Eis uma saudável e prometedora admissão da realidade, se bem que não
exija uma clarividência por aí além. É verdade que certos muçulmanos
costumam com grande regularidade suscitar certas ideias muito críticas
em relação ao Islão. Mas a admissão da realidade é imediatamente, para o
Sheik Munir, compensada por um vôo para a abstracção e para a pureza
teológica: o Islão condena tudo isso. O Islão do Sheik Munir condena, o
que significa que se encontra imunizado não apenas em relação a
preconceitos injustos, mas também a qualquer crítica não-preconceituosa.
Nada tem a ver com aquilo que em seu nome é feito.
Já nos
encontramos, depois do último decreto de pureza teológica islâmica, fora
de qualquer âmbito religioso, e por isso não custa reconhecer que os
líderes europeus (suponho que os líderes islâmicos europeus) têm que
condenar os atentados terroristas de uma forma mais visível. Porque não o
fizeram antes com a “visibilidade” que o Sheik Munir agora exige? O
mínimo que se pode dizer é que oportunidades não lhes faltaram. Mas
enfim, depois da estranheza dos sucessivos propósitos anteriores, a
declaração, com muita boa-vontade, até dá alguma esperança. Mas a
esperança dura pouco. Porque a tal condenação “visível” visa, antes de
tudo o mais, fazer com que as pessoas não tenham “medo do medo”. Não
vale verdadeiramente a pena perder tempo a esmiuçar o significado desse
tal “medo do medo”, porque a intenção que preside à sua menção é clara:
voar em direcção ao abstracto e ao genérico, de modo a evitar qualquer
referência ao concreto. A condenação não aparece como a condenação do
massacre, da morte e do esquartejamento de inocentes adolescentes. É uma
condenação abstracta de um sentimento abstracto. Mais uma vez, as
vítimas não estão ali.
Chegando
a este plano de generalidade, é imperioso reconhecer que o terrorista
não tem religião nem pátria. Não tem religião? De acordo com o Sheik
Munir, e em função da imunização teológica antes referida, não. O que é
ele então? A resposta é de uma assombrosa simplicidade: é um louco. De
uma certa maneira, porque não? Mas qual a natureza singular dessa
loucura, quais os seus motivos essenciais, quais as razões porque adopta
manifestar-se assim? Silêncio. Tudo é feito para manter a discussão na
mais extrema generalidade que impeça qualquer atenção ao concreto e ao
particular.
Generosamente,
o Sheik Munir concede que a situação é também da sua responsabilidade,
para logo lembrar que todos temos um papel. Todos, sem distinção, e
supõe-se que em idêntico grau. Depois de tudo o que veio antes, já nada
surpreende. Como não surpreende a candura da interrogação: como é que eu
posso contribuir? A questão supõe uma desarmante inocência. Ainda não
tinha pensado no caso? Ou a resposta é de uma tal complexidade que a
perplexidade é infindável? A questão é no entanto necessária porque,
mais uma vez, ninguém gosta de viver no medo. É importante que as
pessoas se sintam seguras nas mesquitas, nas igrejas, nas sinagogas e
nos seus lugares de lazer e hoje em dia não há essa segurança. Isso
preocupa o Sheik Munir. Note-se mais uma vez que o abstracto “viver no
medo” substitui qualquer referência às vítimas.
Depois
de ouvir este depoimento, confesso que saí dele igualmente preocupado
com o Sheik Munir. Imagino, e quero imaginar, que a muito reduzida
comunidade muçulmana portuguesa (cerca de 50.000 pessoas, creio) seja
tão pacífica quanto possível. Mas nos tempos em que vivemos o que se
pede antes de tudo aos líderes religiosos dessas comunidades são
condenações concretas dos crimes que em nome do Islão são perpetrados, o
que implica o exercício, eventualmente penoso mas necessário, de
assumir a partilha de uma religião comum com aqueles que são fautores
desses crimes. Para, é claro, depois se demarcarem da interpretação
corânica dos criminosos. Só assim a tal reciprocidade no respeito que o
Sheik Munir reivindica pode ser vivida de forma limpa e plena.
Ora, o
depoimento do Sheik Munir vai num sentido que é o exacto oposto disto. A
quente, logo a seguir ao atentado de Manchester, começa, sem qualquer
referência às vítimas, por exigir reciprocidade no respeito. Critica os
preconceitos contra os muçulmanos. Decreta, contra toda a evidência, a
completa inocência do Islão, quer dizer: a completa ausência de relações
entre o Islão e as motivações dos terroristas. As referências aos
crimes reais são substituídas pela abstracta menção ao medo. Os
assassinos são acusados de uma loucura difusa sem nenhum traço
particular que a identifique. A comunidade islâmica não tem qualquer
obrigação maior do que o resto dos cidadãos de condenação firme,
inequívoca e muito concreta da barbárie que em seu nome é levada a cabo.
Pudera: a ouvir o depoimento do Sheik Munir, os terroristas podiam
perfeitamente ser marcianos. Quem fica tranquilo a ouvir isto?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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