domingo, 28 de maio de 2017

A advocacia, o jornalismo, o sigilo da fonte e a democracia


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Charge do Bier (Arquivo Google)
Fernando Orotavo Neto
A advocacia e a imprensa têm algo em comum: ambas as atividades são incompreendidas pela maioria do povo.  Mas não é só. A anarquia e a tirania só conseguem prevalecer se, antes, a advocacia e a liberdade de imprensa (freedom of the press) e de manifestação do pensamento (freedom of speech) forem convenientemente exterminadas.
É bastante conhecido o brado de Dick, o açougueiro, na peça Henrique VI, de William Shakespeare: “A primeira coisa a fazer é matar todos os advogados”. O revolucionário tinha plena consciência de que os advogados são o principal obstáculo a ser transposto na implementação do caos e de um governo de força, onde os direitos civis e fundamentais do cidadão são suprimidos.
OS GUARDIÕES – Por mais que as pessoas só reconheçam o valor de um advogado quando precisam de um, o certo é que os advogados são o veículo utilizado pelo cidadão para tonar concreto dois de seus direitos fundamentais, o direito ao contraditório e à ampla defesa. São os advogados, também, os principais guardiões do princípio constitucional do devido processo legal, pois é através deles que se concretiza o direito do cidadão de não ser privado da sua liberdade ou de seus bens sem um processo legal e justo (fair trial).
Aqueles que tacham os advogados de imparciais, não percebem que o processo judicial é dialético, e que é das afirmações e negações sucessivas afirmadas nele que vão surgindo a verdade dos fatos.
CORAGEM – Ser um bom advogado não é apenas conhecer as leis. O bom advogado deve ser corajoso, e não deve temer desagradar a promotores, juízes e políticos poderosos. E quando o direito estiver em confronto com a justiça, deve defender a justiça, que é um valor supremo indevassável, ao contrário do direito, que é dinâmico e se transforma com o correr do tempo. O que é direito hoje, pode não sê-lo amanhã. Não vai muito longe, por exemplo, a época em que o adultério era considerado um crime.
A Constituição da República declara que o advogado é indispensável à administração da justiça (CR, art. 133) exatamente porque sem defesa não há democracia, e sem advogado não há defesa ampla e adequada.
DIREITO DE DEFESA – O compromisso sagrado do advogado é com o direito de defesa do seu cliente. Culpado ou inocente, qualquer cidadão tem direito à defesa.  O povo tende a confundir o cliente com o advogado, ainda a mais quando o cliente é impopular. Mas o advogado defende teses, defende as leis, e longe de ser um empecilho para a Democracia, contribui para o seu aperfeiçoamento.
Quando as prerrogativas de um advogado são violadas, como, por exemplo, o sigilo cliente-advogado, quem perde é o cidadão, quem perde é a Democracia, e não apenas o advogado.
Os processos não podem ser julgados com base na razão natural, tampouco pelo clamor social (trial by media), mas de acordo com a razão legal, num julgamento de lei. E por isso os advogados são indispensáveis em qualquer processo, judicial ou administrativo.
A LEI E O REI – No célebre embate entre o Rei James I e o Chefe da Suprema Corte Inglesa, Lord Edward Coke, em 1608, quando o primeiro tentou avocar para si o julgamento no Dr. Borham’s Case, de interesse do Colégio Real De Medicina, Coke se insurgiu contra a tentativa, afirmando exatamente isto, ou seja, que a lei era a varinha mágica de ouro e a medida das causas entre os sujeitos (the law was the the Golden met-wand and measure to try the causes of the subjects) e que o rei não deve estar abaixo dos homens, mas abaixo de Deus e da lei (the king sould not be under man but under God and Law), pois nem mesmo o Rei estava acima da Lei (even the King is not above the law).
Este caso, que inspirou um dos mais famosos julgamentos da Suprema Corte dos Estados Unidos da América do Norte, Marbury vs. Madison, ocorrido duzentos anos após, mostra a importância dos advogados em qualquer sociedade onde haja leis, em qualquer nação que se pretenda autoproclamar democrática.
IMPRENSA LIVRE – Com a imprensa, acontece a mesmíssima coisa. Não há democracia sem imprensa livre, porque é através dela que se dá a formação de cidadãos conscientes, a transparência e fiscalização das gestões públicas, a livre circulação de informações e ideias, em suma e em síntese, o fortalecimento da democracia. A liberdade de manifestação do pensamento, que é fundamental à uma imprensa livre, reside exatamente  “no direito que as pessoas possuem de dizer para a sociedade: eu não acredito no que você acredita” (It´s the right to say to the society. “I don’t believe what you believe”), como observou Kenneth A. Paulson (The upside of offending: free speech and ‘healthy conversations’,www.freedomforum.org, 10.6.2002).
OS OLHOS DA NAÇÃO  – Rui Barbosa, o “águia de Haia”, disse certa vez que “A imprensa é a vista da Nação. Por ela é que a Nação acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam, ou roubam, percebe onde lhe alvejam, ou nodoam, mede o que lhe cerceiam, ou destroem, vela pelo que lhe interessa, e se acautela do que ameaça”.
É por isso que o sigilo da fonte é tão ostensivamente importante. Ressai ele como uma garantia da imprensa livre, destinada a assegurar o exercício do direito fundamental de livremente buscar e transmitir informações. Não se trata de um privilégio egoístico concedido ao jornalista, mas de garantir o direito da sociedade à obtenção de informação.
Assim como nenhum advogado pode ser obrigado a revelar as informações que lhe foram confidenciadas por seu cliente, nenhum jornalista deve ser constrangido a revelar o nome de seu informante ou a indicar a fonte de suas informações, sendo certo, ademais, que, ambos, não poderão sofrer qualquer sanção, direta ou indireta, quando se recusarem a quebrar esse sigilo de ordem profissional.
SIGILO DA FONTE – Trata-se de outra semelhança existente entre os advogados e os jornalistas, cuja indispensabilidade à ordem democrática ressai com clareza solar, em função do múnus público que exercem.
O importante, portanto, é que o povo possa perceber que tanto o sigilo-cliente advogado quanto o sigilo da fonte não constituem meras vantagens ou isenções concedidas a uma classe profissional, pois, no primeiro caso, o que se visa proteger é o direito fundamental à ampla defesa, e, no segundo, a liberdade de imprensa e de manifestação do pensamento, cujos destinatários finais são todos os cidadãos.
Os sigilos, aqui tratados e referidos são, unicamente, meios postos à disposição de um fim maior, uma vez que de nada adiantaria que a Constituição assegurasse direito de defesa e a liberdade de imprensa sem proporcionar aos advogados e jornalistas os meios necessários para que isso acontecesse (cf. teoria jurídica dos poderes implícitos ou “quem quer um fim, deve propiciar os meios).
ESTÃO DE PARABÉNS – Os advogados que se batem corajosamente na defesa dos direitos dos seus clientes estão de parabéns, e merecem o reconhecimento da sociedade, assim como os jornalistas que informam e desnudam os malfeitos praticados pelos poderosos, pois a verdade, nua e crua, é que ninguém está acima da lei, e fora dela o que há é o arbítrio, a tirania, a anarquia e o caos, pois como argutamente observou Henri Lacordaire:
“Entre le fort et le faible, entre le riche et le pauvre, entre le maître et le serviteur, c’est la liberté qui opprime et la loi qui affranchit” (Entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, entre o patrão e o empregado, é a liberdade que oprime e a lei que liberta”).
Que o nosso país possa superar a crise, mas sempre respeitando as leis e a Constituição.
            (Fernando Orotavo Neto é advogado e “dublê” de jornalista… )
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