"É a revolução, estúpido!", escreve o jornalista e editor português José Mendonça da Cruz no Observador.
Basta de falar em populismo, diz ele, é preciso analisar os fatos. "O
que torna Trump interessante é ele representar a primeira tentativa de
ouvir os deserdados do progresso e de repor os equilíbrios capitalistas,
devolvendo relevo ao Estado-nação":
A higiene, primeiro: vamos deitar o rótulo para o lixo.
Tenho uma boa regra para guiar a minha curiosidade sobre estes tempos
interessantes: sempre que leio ou ouço a palavra «populismo» – não sei
quantos faz «populismo», não sei quem é «populista» – paro de ler ou
ouvir. Ali, penso eu, não vou aprender nada; quem invoca o populismo
está a cegar-se voluntariamente. Por mim, queria ver se via.
Falar de «populismo» é
uma tentativa de meter sob o mesmo chapéu realidades muito diferentes:
Brexit, Trump, o despedimento de Renzi, a ascensão de Le Pen e as
propostas «irrealizáveis» de Fillon (hélas!), a alternativa alemã, os
medos austríacos, o protesto holandês, os avisos tão razoáveis de Viktor
Orbán sobre a identidade europeia e cristã da Hungria. Esses movimentos
devem ser entendidos sobretudo como sintomas de um descontentamento que
tem dolorosa e justa consciência de si, mas não sabe ainda para onde
ir. Varrê-los para dentro de um balde rotulado de «populismo» pode
sossegar passageiramente, mas é estéril, é o mesmo que abster-se de
reflectir sobre o que se passa.
E o que se passa é
que o Mundo mudou, que está em curso um aggiornamento ou uma revolução
tão importante como a revolução industrial. Aos sustos e aos tropeções
vamos perguntando para onde havemos de ir a partir daqui.
Quem cozinhou estes «tempos interessantes»?
Após a queda do Muro de Berlim, em 1989, e a derrocada do mundo
socialista, a esquerda foi-se rendendo à falência do seu modelo
económico, e entregou a economia à direita – quando não a perfilhou
mesmo, com maiores ou menores distúrbios cólicos. A esquerda aceitou o
mundo das empresas e mercados, mas não retirou de cena, antes
estabeleceu o seu bastião derradeiro no mundo da cultura e dos costumes.
Com descaso ou presunção, a direita entregou-lhos de mão beijada,
juntando-lhes o bónus do ambiente, enquanto tratava de gerir economia e
finanças num mundo globalizado e competitivo.
Foi em resultado
desta espécie de tácito tratado de Tordesilhas que floresceram a
globalização e inovação, de um lado, e o politicamente correcto e as
medidas «fracturantes» ou de desarticulação de sociedades, de outro. A
evolução paralela e sem reais contrapesos destes dois mundos divididos
chegou a extremos que produziram o descontentamento actual.
A revolta da «iliteracia supraveniente».
A globalização significou fácil acesso a, ou liberalização de
movimentos de capitais (e investimento), de mão de obra (e cérebros), de
hardware, e do comércio. Deve-se à globalização um enorme salto de
inovação e progresso tecnológico, e o brutal decréscimo da percentagem
da população mundial vivendo em nível de pobreza – de mais de 35% em
1990 para menos de 10% em 2015. Mas a interacção de liberdade, inovação e
progresso tecnológico teve os seus subprodutos: o desaparecimento de
profissões e centros produtivos, o desemprego, a exclusão, o
descontentamento. Gente útil e produtiva viu as suas ocupações
tornarem-se, subitamente, supérfluas ou arcaicas. De membros da
população activa em determinado momento, viram-se transformados em
iletrados da nova era. Acresce que o progresso social tornara
inaceitáveis, hoje, condições de vida que há poucos anos não seriam
consideradas dramáticas. A globalização interage ainda com a inovação
para criar um tipo especial de desigualdade a que eu chamaria virtuosa,
mas que a esquerda usa para fazer demagogia: a desigualdade dos grandes
inovadores, de revolucionários como Gates, Zuckenberg, Bezos ou Jobs,
multimilionários porque num mundo globalizado esse era o resultado
inevitável das suas invenções revolucionárias.
Fossem as queixas dos
deserdados mais ou menos legítimas, o certo é que ninguém as ouviu
realmente até elas se imporem eleitoralmente nos EUA.
A revolta dos politicamente corrigidos.
Sem gastar muito do seu latim com a economia e as finanças (para além
de episódicos clamores contra «os especuladores» e «os mercados», ou de
proclamações do enésimo fim do capitalismo ao peso das suas
«contradições»), a esquerda encontrou na globalização um terreno fértil
para explorar as suas novas bandeiras. O multiculturalismo e o
relativismo cultural pareciam adequados a um mundo sem fronteiras; o
mesmo para a liberalização de costumes num ambiente de contactos
internacionais, turismo, relações pessoais e comerciais a todos os
azimutes. E, sendo o mundo um só e de todos, as boas práticas ambientais
pareciam um bom serviço prestado, sem excepção de destinatário algum.
Mas a esquerda quis
usar essas bandeiras como instrumentos de domínio. Compostos num ramo de
correcção política, multiculturalismo, relativismo e liberalização de
costumes (ou «questões fracturantes», expressão bem mais reveladora)
procuraram estabelecer uma tirania comportamental e impor ideias e
práticas que eram estranhas e ofensivas das crenças e valores
identitários das sociedades ocidentais e cristãs. A recusa de integração
por parte das crescentes comunidades islâmicas e a vaga de terror
islâmico apenas apimentaram e deram urgência a uma revolta defensiva.
Quanto ao ambiente, ele serviu demasiadas vezes de arma de arremesso
contra as economias liberais.
As respostas.
Entre o sonho de Bill Gates de um computador em cada casa e a sua
concretização correram menos de 30 anos. Os pulos e avanços gigantescos
no mundo da informática, das comunicações, da automatização e da
robotização, dos transportes, da medicina provocam comoções e
desequilíbrios económicos e sociais agora, e saldar-se-ão por um mundo
novo, talvez em menos de duas décadas.
Entre as propostas
para encarar esse novo mundo, as menos interessantes são as de Marine le
Pen – de regresso a um mundo velho, estatizado, alheio à concorrência,
só possível sobre as ruínas da União Europeia – ou as da esquerda
romântica ou infantil de Benoît Hamon – proponente do assistencialismo
terminal. É pena que, ao que parece, Fillon não venha a poder
esclarecer-nos sobre se o seu programa era de real mudança ou de mudar o
bastante para ficar como está.
O que torna Trump
interessante é, em primeiro lugar, ele representar a primeira tentativa
de ouvir os deserdados do progresso e de repor os equilíbrios
capitalistas, mediante a devolução da tónica ao familiar conceito de
Estado-nação, de interesse nacional, de «a minha sociedade primeiro».
O segundo ponto que
torna Trump interessante (e muito contribuiu para a sua eleição) foi a
novidade de, contra os muros de pudor ou sujeição erigidos pela
correcção política, ele abordar sem meias palavras, frontalmente e com
brutalidade, os riscos, os medos, a raiva e o desconforto da civilização
ocidental e cristã (ocidental e cristã): a desordem, o relativismo, o
multiculturalismo, a tolerância da intolerância, as politicas
socialmente fracturantes, a imigração descontrolada, o perigo e o terror
islâmico.
Mas, por conter
elementos contraditórios, a administração de Trump estará sempre sob
vários fogos: o dos defensores da globalização, que atacam o
proteccionismo; o dos liberais que franzem o sobrolho a um megaprograma
de obras públicas, o qual agravará défice e dívida, embora aplaudam a
desregulamentação e a descida de impostos; e o da esquerda, que
compreendeu bem que as suas bandeiras têm no novo presidente um poderoso
inimigo e porta-voz de inimigos (basta ver o obtuso rasgar de vestes
que vai nas redacções de televisões e jornais portugueses para aquilatar
do tom).
É muito provável que,
numa primeira fase, a reforma fiscal, o investimento em obras públicas,
o proteccionismo, a tónica nas relações bilaterais (as relações com o
Reino Unido de Teresa May servirão de excelente termómetro para esse
tipo de moderação da globalização), reponham a taxa de crescimento
americana em níveis chineses. A falta do efeito catalisador da
globalização far-se-á sentir a médio prazo, o que exigirá nova busca de
equilíbrio, mas por essa altura a ordem mundial estará muito mudada,
provavelmente para melhor, embora não necessariamente.
E Portugal? Portugal
será um magnífico local de observação. Aqui, no mundo dos dependentes do
Estado, na terra dos afectos e do empastelamento político e económico,
aqui no refúgio do último partido estalinista europeu – aqui, no atraso e
na cepa torta, em suma, longe dos riscos, mas das recompensas, também –
pode-se assistir sentado ao progresso mundial.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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