Na passada quinta-feira, teve lugar na Universidade Católica a 17ª Palestra Anual Alexis de Tocqueville,
promovida pelos Instituto de Estudos Políticos daquela Universidade
(IEP-UCP), com o patrocínio exclusivo do BPI. O evento sofreu sem dúvida
de graves lacunas: não foram abordados os magnos problemas que afligem a
nação, os sms da Caixa Geral de Depósitos, nem a história dos
offshores. Também não foram dirigidos insultos a ninguém, nem discutidos
tópicos da vida privada de celebridades mediáticas. Com chocante
indiferença por esses magnos temas da vida nacional e internacional, o
tema central foi “A Tradição Ocidental da Liberdade e as suas Raízes
Clássicas e Cristãs nos Grandes Livros”.
Acresce que este tema bizarro é recorrente no IEP-UCP. Seis cadeiras precisamente intituladas “Tradição dos Grandes Livros”
(TGL) percorrem os seis semestres da Licenciatura em Ciência Política e
Relações Internacionais. Uma sétima, intitulada “Geopolítica e
Geostratégia” é inteiramente dedicada a Tucídides e à sua História da
Guerra do Peloponeso. Uma oitava cadeira, “Teoria Política
Contemporânea”, é dedicada aos principais autores e obras do século XX. O
mesmo tema de TGL é recorrente na revista Nova Cidadania, publicada pelo IEP-UCP.
Anthony O’Hear, o orador da Palestra Tocqueville da passada quinta-feira, ofereceu algumas pistas
para compreender esta bizarria. Disse ele, citando Leo Strauss, que a
vida é demasiado curta para viver com outros livros que não os Grandes
Livros. E sugeriu que, através do estudo das grandes obras do Ocidente,
somos levados a elevar o olhar para a perpétua conversação sobre os
grandes temas que inspiram a civilização ocidental fundada na liberdade
sob a lei, a civilização cujas raízes remontam a Atenas, Roma e
Jerusalém.
“Perpétua
conversação” é a expressão adequada. Os grandes autores olharam os
grandes temas com perspectivas diferentes. É por isso que as culturas
que só conhecem a “doutrinação” e ignoram a “conversação” têm
dificuldade em compreender o apreço ocidental pela conversação
pluralista da Tradição dos Grandes Livros. Para essas culturas não
ocidentais, educar significa basicamente “treinar” — treinar decisores
arbitrários e/ou seguidores obedientes do capricho da vontade e do
apetite sem entrave. Esse é o treino que alimenta o fanatismo e o
tribalismo.
Um exemplo curioso
terá sido fornecido por uma recente visita de estudantes de Eton a
Vladimir Putin. Este queria saber como e porquê tinha aquele colégio
“produzido” 19 primeiros-ministros britânicos. Os alunos citaram o
ambiente pluralista do colégio, a existência de inúmeras sociedades e
clubes promovidos pelos alunos e a grande variedade de oradores
convidados — o que alargava os horizontes de todos. Segundo Charles
Moore (que relata o encontro
na Spectator de 18 de Fevereiro), o sr. Putin terá tido dificuldade em
compreender o conceito de “sociedades” ou “clubes”, sobretudo por estes
não serem centralmente dirigidos e por abrangerem áreas tão diferentes
como política, literatura ou, simplesmente, … gastronomia.
Num outro artigo recente,
o Guardian de Londres interrogava-se sobre o mistério da Licenciatura
em PPE (Philosophy, Politics and Economics) de Oxford, pela qual
passaram inúmeros líderes políticos e empresariais, diplomatas e
jornalistas, britânicos e não só. O longo artigo (algo oblíquo, como
seria de esperar do Guardian, um jornal que não costumo frequentar) não
resolve o mistério. Mas de novo remete para o papel crucial desempenhado
pelo estudo das grandes obras do passado e para a moderada indiferença
relativamente aos temas que dominam o dia-a-dia.
Também a edição mais
recente do City Journal de Nova Iorque (Winter 2017, Volume 27, Number
1) publica um artigo sobre a Tradição dos Grandes Livros. Sob o título “A Republic in the Atlantic”,
Miguel Monjardino (que lecciona Tucídides no IEP-UCP) relata a
extraordinária experiência de estudo dos grandes livros que vem
promovendo na Ilha Terceira com alunos do 10º, 11º e 12º anos.
Escrevendo em 1968
sobre a “educação liberal” — no sentido medieval das “Artes Liberales” e
do estudo das grandes obras —, Leo Strauss dizia:
“A educação liberal é
o remédio contra o veneno da cultura de massas, contra os efeitos
corrosivos da cultura de massas, contra a sua tendência intrínseca para
produzir ‘especialistas sem espírito ou visão e voluptuosos sem
coração’. […] A educação para a gentlemanship, para a excelência humana,
a educação liberal consiste em recordar a cada um de nós a excelência
humana, a grandeza humana. […] A constante conversação com as grandes
obras ensina-nos a mais elevada forma de modéstia, para não dizer
humildade. Ao mesmo tempo, exige-nos uma ruptura completa com o ruído, a
pressa, o vazio e a vulgaridade da Feira de Vaidades dos intelectuais,
bem como dos seus inimigos. […] A educação liberal é a libertação da
vulgaridade (…) e a oferta da experiência com as coisas belas. […] Por
esta via, pode talvez voltar a ser verdade que as pessoas educadas
liberalmente venham a ser pessoas moderadas.” (Leo Strauss, Liberalism: Ancient and Modern, with a Foreword by Allan Bloom, The University of Chicago Press, 1968/1995).
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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