O execrável ditador
Fidel Castro deixa viúvas na imprensa, nas universidades, nas igrejas.
Merecem, todas elas, o inferno em que já vivem. RIP. A propósito, segue
texto de José Manuel Fernandes no Observador:
Há muito que Fidel
Castro não era uma figura deste tempo. Não por estar doente e afastado
do poder, que passara ao irmão, mas por representar uma utopia há muito
desacreditada, a utopia marxista-leninista, e a mais trágica das ilusões
do século passado, a ilusão comunista.
O El Pais tinha ontem um título feliz: El siglo XX queda definitivamente atrás con la muerte de Fidel Castro. O texto centrava-se em Cuba, mas a mensagem serve para o mundo. Mesmo que alguns teimem em não a escutar.
Fidel sobreviveu a
todos os demais não apenas porque viveu até aos 90 anos e morreu na
cama. Fidel sobreviveu-lhes porque, mesmo tendo cedido as rédeas do
poder ao seu irmão Raúl, morreu numa Cuba moldada à sua imagem e
semelhança, subjugada à sua vontade, tão pateticamente “revolucionária”
como o ancião que já só víamos em raras aparições envergando lustrosos
fatos de treino.
Mas Fidel sobreviveu
sobretudo porque conseguiu manter viva – ainda que cada vez mais
tremelicante – a chama que alimentou o seu mito e o mito do socialismo
“gentil” e caribenho. Há nessa sua arte uma mistura de felizes
circunstâncias histórias, muito carisma pessoal e uma dose ainda mais
considerável de cegueira de gerações de “sonhadores” sempre disponíveis
para se deixarem seduzir por ditadores.
O mito castrista
começou muito antes de entrar triunfalmente em Havana a 1 de Janeiro de
1959. Começou com um fracasso – o assalto ao quartel Moncada, em 1952 – e
continuou com uma aventura – a partida, há exactamente 60 anos (a 25 de
Novembro de 1956), do iate Granma da costa de Veracruz, no México, em
direcção a Cuba com 81 jovens revolucionários a bordo. Depois aconteceu o
milagre: Fidel estava entre os 12 revolucionários que conseguiram
escapar a um desembarque catastrófico e, com base nessa minúscula força,
conseguiu iniciar na Sierra Maestra um movimento de guerrilha que mais
tarde o levaria até Havana.
Foi nesse tempo que a
sua imagem romântica começou a ser construída, e por um jornalista do
New York Times, Herbert Matthews, que o apresentou ao mundo como o homem
que iria resgatar Cuba da ditadura corrupta de Fulgêncio Batista em
nome dos mais puros ideais democráticos. Quando finalmente triunfou, não
demorou a revelar os seus métodos: os julgamentos populares tornaram-se
comuns na Cuba revolucionária, as execuções sumárias banais, muitas
delas supervisionadas pelo seu companheiro Che Guevara. Não demoraria
muito a abolir todos os partidos políticos, a liquidas a liberdade de
expressão e informação, a promover a nacionalização de toda a economia e
a sistematicamente ver-se livre de todos os que lhe poderiam fazer
frente (Cienfuegos, o primeiro a fazer-lhe frente, morreu num acidente
de aviação; Che vaguearia pelo mundo, embaixador da revolução, até ser
morto nos confins da selva boliviana).
Só que, entretanto,
já nascera o mito da revolução cubana – um mito que teve como primeira
fonte tratar-se daquilo a que um antigo embaixador britânico, David
Thomas, chamou “um produto crioulo”, isto é, uma revolução made in Cuba,
uma revolução bem diferente das que, na Europa, tinham sido impostas
pelos tanques soviéticos. Uma revolução que, para mais, era telegénica,
com os seus “barbudos” e as suas fardas cor de azeitona. Korda, o
fotógrafo revolucionário que captou a icónica imagem de Che Guevara que
depressa começou a ser estampada em t-shirts por todo o mundo,
imortalizaria também um Fidel de barrete militar e charuto na boca, uma
imagem “cool” que contrastava com o cinzentismo das geriatrias que
governavam a URSS e os países da Europa de Leste.
Se a tudo isto
acrescentarmos a ideia, cuidadosamente cultivada, de um pequeno David
(Cuba) e desafiar um poderoso Golias (os Estados Unidos), então temos
quase todos os ingredientes necessários para explicar o fascínio que o
castrismo teve, e que em parte ainda mantém apesar da evidente
decadência do regime e do seu líder.
Mas para termos uma
explicação completa é necessário acrescentarmos dois outros factores. O
primeiro, foi o génio político de Castro. O segundo a duplicidade moral
de boa parte da esquerda e da intelectualidade quando se trata de julgar
ditadores socialistas.
O génio político de
Castro – que quando entrou em Havana nem era ainda comunista, ao
contrário do seu irmão Raúl e do próprio Che Guevara – passou, primeiro,
por ter adoptado a ortodoxia que, nos anos da Guerra Fria, lhe permitia
ter um aliado disponível para pagar todas as contas de uma Cuba com a
economia dizimada pela estatização, e, depois, por ter percebido que só
resistindo na ortodoxia e mantendo o regime o mais fechado possível,
conseguiria sobreviver, isto é, conseguiria evitar ter o destino ingénuo
de Gorbatchov.
Acontece porém que o
génio da sobrevivência política nem sempre é um bem para quem tem de o
suportar, algo que Portugal sentiu na carne porque Salazar também teve o
génio para sobreviver à vitória das democracias na II Guerra e, depois,
ao eclodir das guerras coloniais. Sabemos como isso condenou Portugal
ao atraso, tal como sabemos como o castrismo condenou Cuba à miséria.
Como em tempos disse Eloy Gutiérrez Menoyo, ex-comandante e
revolucionário de 1959, “todos queríamos liberdade e justiça social, mas
a revolução foi sequestrada por Fidel e o preço que pagámos foi
demasiado alto”.
Altíssimo, tanto no
que respeita á falta de liberdade – há muito menos liberdade em Cuba do
que houve em qualquer período da ditadura salazarista, algo que só por
absoluta cegueira se pode negar – como à pobreza generalizada a que
condenou a ilha. Aquele que era o país mais desenvolvido da América
Latina quando Castro entrou em Havana é hoje um dos mais pobres e nem
sequer é verdade que isso tenha sucedido em nome da igualdade – em Cuba
são pobres os que só têm pesos, vão-se desenrascando os que têm acesso
aos dólares das remessas da emigração ou do turismo – ou por causa do
“bloqueio”.
De resto a permanente
insistência em atribuir todos os males do país ao “bloqueio” é, ao
mesmo tempo, uma demonstração do génio político de Fidel, que sempre
soube explorar a obsessão estúpida dos norte-americanos para explicar
todos os seus fracassos económicos, e uma demonstração de como dominava
as técnicas orwellianas de fazer com que a realidade não fosse o que
era, mas a forma como o regime a descrevia. Na verdade Cuba nunca sofreu
um “bloqueio”, nunca esteve cercada por navios que bloqueassem a
entrada e saída de mercadorias dos seus portos ou F16 que fechassem o
seu espaço aéreo. Cuba sempre pode ter relações comerciais com a maioria
– a quase totalidade – dos países do mundo e com quase todos os seus
vizinhos. Em Cuba pode-se mesmo encontrar produtos norte-americanos nas
lojas, mas só nas lojas que só aceitam dólares. O “bloqueio” de Cuba
sempre foi outro: uma economia dependente da monocultura da
cana-de-açúcar que só sobreviveu com alguma largueza enquanto a URSS
comprava as safras a preços muito acima dos de mercado. No entanto ainda
hoje boa parte da esquerda (vejam-se as reacções à morte de Fidel do
PCP e de figuras como Louçã)
ainda nos falam dos sofrimentos do povo cubano como sendo uma
consequência do inexistente “bloqueio” em vez de a atribuírem à mais que
demonstrada ineficiência da sua economia estatizada.
Esta duplicidade
moral da esquerda pode ser ilustrada com uma provocação simples, mas
verdadeira: o regime de Castro matou muito mais opositores do que o
regime de Pinochet; Castro, ao contrário de Pinochet, nunca permitiu uma
consulta livre sobre o seu destino político, nem abandonou o poder
respeitando a vontade popular; Castro encontrou uma Cuba corrupta mas
economicamente dinâmica e deixa-a empobrecida e corrompida pelos mesmos
males que vituperou, como prostituição, enquanto Pinochet recuperou a
economia chilena, ainda hoje a mais dinâmica de toda a América Latina.
Castro não deveria por tudo isso merecer mais condescendência do que a
tolerância zero que justamente dedicamos à ditadura chilena. Sabemos bem
como não é isso que acontece e como tantos procuram encontrar
justificações e desculpas para continuarem a adular o “barbudo” que
alimentou os seus sonhos juvenis, mas que hoje são apenas delírios
senis.
Um ditador é um
ditador, e quando tantos, à esquerda e até à direita, continuam a
desculpar, justificar ou mesmo adular figuras como Fidel Castro, estão
apenas a regressar à velha máxima que levou os Estados Unidos a apoiarem
vários regimes ditatoriais: “é um filho da puta, mas é o nosso filho da
puta”.
Possa a sua morte trazer melhores dias para o sacrificado povo cubano.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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