A
primeira vez que vi uma mulher muçulmana a ir a banhos com um aparato
estranho foi aí há uns vinte e dois anos, na Tailândia. Na praia e na
piscina do hotel a senhora usava uns calções de licra até aos joelhos
(como então se usavam para as aulas de ginástica), um maillot de mangas
compridas e terminava os preparos com uma túnica de seda ou de algodão
quase até ao joelho. Era tudo muito colorido – nada parecido com os
vultos negros, ao estilo dos dementors, essas criaturas malignas dos
livros do Harry Potter, que são as burqas e niqabs – mas ainda assim eu
achei a imagem muito ridícula, tanta roupa sob aquele sol forte, tanto
tecido pesado para nadar.
Depois
disso já vi pior, claro. A primeira vez que vi uma mulher a tomar banho
de burqa preta no mar, na Índia, deixou-me atónita. Mas também já vi
muitas islâmicas, daqueles países onde as mulheres obrigatoriamente se
mascaram dos tais dementors, a exibirem a figura mais ou menos elegante
em bikinis reduzidos nas praias europeias – certamente numa clara
demonstração de apreço pelas imposições islâmicas ao vestuário das
mulheres, mal lhes é permitido, guardam no fundo da bagagem de porão os
panos pretos e entregam-se à escravidão ocidental de ostentarem as
formas femininas.
Vem isto a
propósito da proibição do burkini numas tantas praias francesas, da
suspensão da proibição e da reação histérica – e que me pôs boquiaberta
e, reconheço, agoniada – das almas sensíveis, que tão aviltante acharam a
proibição dessa coisa magnífica que é o burkini, em defesa apaixonada
desse símbolo maior da opressão das mulheres islâmicas (enquanto não
conseguirem oprimir mais umas tantas – já lá vou).
Se um dia
se escrever um Declínio e Queda da Civilização Europeia, estou certa
que lá no meio estarão estes dias, em que os ocidentais (ia dizer
idiotas úteis, felizmente parei a tempo) apreciadores das suas
liberdades se dedicaram a incentivar e a promover e, até, a glorificar o
uso de burkinis – e burqas e niqabs, que vêm atrás, bem como toda a
ideologia islâmica de supressão de direitos e liberdades (não) usufruídos pelas mulheres muçulmanas, de que estas peças de roupa são indissociáveis.
Num momento em que, questões legais à parte, toda a sociedade europeia
devia unir-se no repúdio pela subalternização e maus tratos às mulheres
das comunidades muçulmanas da Europa, punindo socialmente os símbolos da
opressão, o que sucedeu foi a aceitação de facto da redução da esfera
de liberdade dessas mulheres. Os islâmicos – que andam há décadas a usar
as liberdades que lhes são concedidas no Ocidente contra os ocidentais –
devem ter celebrado com festa rija esta capitulação.
Houve até
gente que só posso qualificar de doentia que garantiu que burqa e
burkini eram mesmo símbolos de liberdade das mulheres islâmicas, porque
assim se podiam movimentar. Que necessitem de se cobrir para se
deslocarem, pelos vistos, não é nenhuma restrição à liberdade. Aqui
copio Richard Martineau (Ana Cristina Leonardo traduziu-o):
os negros americanos afinal são uns ingratos, deviam estar devidamente
comovidos com a permissão de andarem nos transportes públicos nos bancos
de trás e de estudarem nas escolas públicas mais manhosas.
Esquematizemos alguns pontos sobre esta questão.
1.
Aparentemente as boas almas, que se escandalizam porque agora há gente
que quer legislar sobre a forma de vestir das mulheres, não sabem, mas
antes de proibição de burqas e afins já existia legislação que
restringia a roupa feminina – e a masculina também. De acordo com os
usos sociais da Europa, o nudismo é proibido em público fora de certas
áreas restritas. Se um homem ou uma mulher se passear numa cidade
europeia coberto apenas com uma musselina transparente, deixando ver as
partes genitais, é provável que termine com uma acusação judicial de uma
qualquer variante autóctone do crime de importunação sexual.
Se
aceitamos que para a convivência social normal na Europa não é
aconselhável termos homens e mulheres nus nas ruas, nas lojas e nos
transportes, nem sequer cobertos só de diáfanos tecidos transparentes,
então é perfeitamente lógico que se entenda que também atenta contra a
tal convivência social dementors (de qualquer sexo) que mostrem apenas
os olhos, ou mulheres (ou homens) nas praias com roupa que levante
desconfianças de problemas de segurança pública. Isto no espaço, nos
transportes e nos edifícios públicos – dentro da propriedade privada de
cada um, ou uns dos outros, vistam-se como entenderem. Se quiserem criar
um centro comercial privado com dress code de dementor, nada tenho a
dizer se as mulheres por lá se passearem de niqab e de burqa.
2. Não é
de mais salientar: não, os europeus não têm qualquer obrigação de
aceitar nos seus países hábitos de culturas terceiras que são contrários
aos mais basilares valores europeus – e eu achava ingenuamente que a
igualdade entre os sexos se contava nesses pilares da atual civilização
europeia. Não temos de integrar usos e costumes que ponham em causa
aquilo que valorizamos e cuidamos. Sobretudo: não temos de fingir que os
barbarismos de outras culturas são tão moralmente defensáveis como o
modo de vida europeu. A burqa e os seus primos marítimos são objetos
estranhos à cultura europeia e sinónimos de ataque cerrado ao usufruto pelas mulheres de direitos humanos e liberdades
que estão disponíveis na Europa. Em boa verdade, a burqa e companhia
são mensagens de incitação à violência contra as mulheres – e deviam ser
tão execrados como mensagens que apelam ao assassínio de muçulmanos.
3. Quando
o véu (entre outros) foi proibido nas escolas francesas, logo as almas
sensíveis decretaram que levaria raparigas islâmicas a ficarem sem
educação. O resultado?
Mais de metade das raparigas muçulmanas deixaram de usar o véu de
imediato; cerca de quinhentas tiveram um assomo de rebeldia à lei da
laicidade, mas retiraram o véu depois de conversas com os professores.
No ano seguinte à implementação da lei, 45 raparigas tiveram de deixar
as escolas públicas por se recusarem a retirar o véu.
Quando o
niqab e a burqa foram proibidas em França em 2011, também se decretou
que os dois milhares de muçulmanas que usavam estas roupas em França não
mais sairiam de casa. Qualquer pessoa com neurónios funcionais
desconfiaria que os homens islâmicos casados com mulheres que se tapam
totalmente seriam demasiado machistas para passarem de súbito a
dedicar-se a tarefas (vistas como femininas) como levar os filhos à
escola ou fazer as compras no supermercado. Ora, segundo o ministro
Claude Guéant, em 2011 o número de mulheres usando o véu integral diminuiu para mais de metade (e veio desaparecendo depois disso).
As mesmas
boas almas nestas semanas também sabiam que a proibição do burkini
impediria as mulheres muçulmanas de irem à praia. A minha aposta é que
estariam tão certos nesta conjetura como nas duas anteriores.
4. O
único argumento válido (não fora o ponto 2) pela permissibilidade de
burqas e véus e burkinis é o da escolha LIVRE pela mulher de assim se
vestir, seja para agradar ao seu marido, por fervor religioso, o que lhe
apetecer. As pessoas que se comovem porque as muçulmanas do Iraque
queimam as burqas (tal o amor que lhes devotavam) quando as suas terras
se libertam do ISIS, dizem sem corar que as muçulmanas europeias
escolhem por si próprias cobrir-se totalmente. Mas só quem faz por estar
muito ignorante do que se passa nas comunidades islâmicas europeias
pode argumentar assim. Claro que algumas mulheres poderão mascarar-se de
dementors por escolha livre, mas muitas mais cobrem-sepor imposição de pais, maridos, irmãos, comunidade.
E dizer, por exemplo, que uma mulher que depende financeiramente da
família – e não é fácil uma mulher com véu, integral ou não, encontrar
trabalho – pode fazer escolhas livres é a negação de todo o discurso da
segunda metade do século XX que aconselhava as mulheres a trabalharem
para se poderem, querendo, libertar de pais e maridos. De resto – como
qualquer pessoa que já contactou com a agressividade do islão europeu
sabe – já estamos na fase desse grande objetivo islâmico, que é mandar tapar também as mulheres não muçulmanas.
Em todo o
caso, fico a aguardar que os defensores apaixonados da ‘liberdade’ de
se usar burqa e burkini contestem a criminalização da mutilação genital
feminina corrente nos países europeus. Afinal, se uma mulher pode
decidir livremente o que quer que seja sobre si própria, ai a liberdade
individual, ai a liberdade religiosa, ai isso tudo, e se por cá temos de
aceitar todos os costumes mais bárbaros e repugnantes que vieram de
culturas estrangeiras, não há razão nenhuma para impedir que uma mulher
adulta escolha ser genitalmente mutilada no meio da Europa (em vez de
viajar até África). Há que levar a liberdade (pobre teclado quando
escrevo isto) das mulheres até ao fim.
Em suma:
cabe-nos escolher se queremos estar do lado das mulheres que se cobrem
livremente (e que merecem esse destino) ou do lado das que deixam,
devido à lei, de usar o véu ou o burkini que usavam por imposição
familiar ou comunitária. Eu escolho estar do lado destas últimas.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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